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O executivo de uma empresa de químicos é encontrado morto no seu escritório num 17º andar. A polícia fica intrigada, pois a causa de morte indica afogamento. Seguem-se outros crimes igualmente inexplicáveis, incluindo um corpo queimado encontrado num apartamento que não apresenta quaisquer sinais de incêndio. Tudo indica que há um assassínio em série à solta em Taipei e as autoridades decidem pedir a colaboração de um agente do FBI. Richter (Morse) terá uma acção meramente consultiva, sendo acompanhado por Huang Huo-tu (Leung), um agente da polícia que trabalha no departamento de assuntos estrangeiros. Huo-tu é mal visto pelos colegas desde que denunciou um agente corrupto, num caso que teve igualmente consequências para a sua família. A filha tem problemas de comunicação e a mulher, Ching Fang (Liu), pediu o divórcio. Richter também tem problemas de comunicação — de natureza diversa —, mas contribui para que a investigação progrida. Uma pista nova leva os dois polícias a consultar um especialista em taoismo (Lung).
Produzido com capitais da Columbia Pictures Asia, «Double Vision» é uma rara entrada do cinema taiwanês no campo do horror. A estrutura é familiar de títulos do género produzidos em Hollywood, que se desenvolvem a partir de uma típica união de esforços entre dois agentes cujas origens ou métodos de trabalho diferentes geram um embate de personalidades. Aqui não há exactamente um conflito inicial, antes o guião se centra nos tormentos do que resta da vida familiar de Huo-tu, sem que se forneçam muitos elementos sobre Richter, depois da introdução que o define como um investigador e “profiler” competente, isto é, as duas personagens não são colocadas num mesmo nível de relevância.
O emparelhamento de David Morse com Leung Ka-fai reflectirá a esperada internacionalização deste título e, em muitos aspectos, «Double Vision» podia ser uma produção ocidental, com os devidos ajustes (a inversão do protagonista com o seu "sidekick", para começar). A utilização de um agente do FBI não é explorada até às últimas consequências, mas tal não será necessariamente uma falha do guião. A opção, afinal, é política e Richter não está a trabalhar num terreno familiar. A sua contribuição não é negativa, mas nunca se afere exactamente essencial; serve a necessidade do argumento assentar no contraste entre duas visões (trocadilho casual). A investigação revela que o contorno dos crimes poderá não ser da natureza que inicialmente se previa, o que não será nenhuma surpresa tendo em conta que o pendor sobrenatural e de misticismo religioso está indissociavelmente ligado à premissa do filme, que explora os binómios ciência-religião e Ocidente-Oriente (a relação entre os dois polícias e a ambiguidade dos factos, aliás, tem sugerido comparações com a popular série de TV "X-Files").
Se em termos estruturais, «Shuang Dong» não é inovador nem se afasta dos standards do cinema de género ocidental, o mesmo já não se poderá dizer do modo como a história se desenvolve, sobretudo com a entrada dos elementos taoistas, que são, naturalmente, de raiz asiática. Mas a vertente religiosa não é desenvolvida de forma complexa ao ponto de um espectador ocidental se sentir "confuso" com o que quer que seja e não há diferenças relevantes por comparação com um qualquer filme ocidental que use elementos de outra civilização, antiga ou distante, e aí assente uma qualquer intriga que envolva maldições, profecias ou outros elementos, com recurso a artefactos ou a interpretação de livros antigos, com a assistência do especialista de serviço. Tal parece decorrer novamente da intenção de manter o filme o mais digerível possível por uma audiência global. Nada de particularmente negativo quanto a isto, note-se.
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Com o casamento com Ching Fang (Liu Ruoying) a ir por água abaixo, Huang Huo-tu (Leung Ka-fai) dedica-se à investigação de um conjunto de homicídios tão misteriosos quanto violentos ao lado do agente do FBI Richter (David Morse). |
Outro elemento formal que revela que estamos fora do âmbito de um filme de género feito num estúdio de Hollywood é a representação da violência gráfica. «Double Vision» não é um filme "gore", é antes um thriller de mistério/horror, mas há uma sequência que não pode deixar de deixar marcas na nossa memória, pela sua intensa brutalidade, longe do esquema de montagem que apresenta o “choque” seguido de corte imediato para outra cena, permitindo ao espectador descansar. Aqui temos uma verdadeira cena de “acção”, que se desenrola durante alguns minutos de verdadeiro splatter, com algumas mutilações que poderão não ser particularmente imaginativas, mas que surpreendem pela boa execução de efeitos com recurso à tecnologia digital, sem que se perca a sensação do orgânico, misturados com efeitos de maquilhagem igualmente bem conseguidos — a credibilidade última da sequência e o seu impacto assentam na mise en scène e na eficiente montagem desse momento de verdadeira carnagem. O orçamento foi definitivamente empregue para bom efeito, passe o trocadilho.
A montagem para uma classificação R nos EUA, também está presente no DVD de Hong Kong (um verdadeiro "extra", no sentido de redundante); o master deverá ser idêntico para todas as edições, com diferenças no que toca a legendagem e dobragem. Na versão mais curta, a cena mais violenta, referida anteriormente, está amputada das cenas mais sangrentas e a montagem denota-o. Existe algum material não presente na versão integral, mas a alteração mais curiosa poderá ser a substituição do texto final por outro muito mais simples e com um sentido diverso. Ainda que os diálogos em mandarim e inglês e o relacionamento entre duas pessoas de culturas díspares tornem a substituição da pista de som uma opção particularmente tola, a edição americana permite também ver o filme em inglês e em português brasileiro.
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«Double Vision» apresenta alguns momentos de grande violência gráfica (na versão integral). |
A desagregação da família é uma componente bem explorada e executada em «Double Vision», reforçando as pressões e o stress que assolam o protagonista, ainda que se acabem por evitar grandes desenvolvimentos. Essa poupança narrativa é comum a todo o filme, felizmente; não se esfrega nada na cara do espectador, nem se fazem close-ups que garantam que se entendeu tudinho ou se usa o score para o mesmo efeito. Há mesmo uma graçola com a gaffe de Richter, ao tentar dizer umas palavrinhas em mandarim, que nunca lhe é explicada (nem a nós, por via da legendagem da cópia visionada): diz "xiexie ni ma" (que, dependendo da variação do tom em “ma”, pode ser "obrigado à tua mãe" ou assumir a forma de questão: “agradeço-te?”) em vez de "xiexie nimen" ("agradeço-vos") [1].
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Evitando parar para dar explicações à audiência consegue-se manter um ritmo mais satisfatório. No entanto, parece ficar a faltar algo à conclusão, ilustrando melhor as consequências das acções que justificaram os crimes (desenvolver seria falar demais sobre o final) e a ambiguidade nos momentos que precedem os créditos mais do que parecer “inteligente” ou surpreendente, acaba por contribuir, em certa medida, para mitigar o seu impacto, ainda que se recupere algo nos momentos que precedem o fade out.
[1] A diferença de tons é imperceptível para um ouvido não treinado, mas em todo o caso ambas as opções estão erradas — o problema de Richter não foi com o tom mas com a pronúncia da palavra. A legendagem em chinês "traduz" tal como referido acima no texto: primeiro 謝謝你媽 (caracter a caracter: obrigado tua mãe) e depois 謝謝你馬 (caracter a caracter: obrigado tu [partícula de interrogação]). O "ma" de "mãe" é primeiro tom (mā) e o da partícula que forma a interrogação é terceiro tom (mă). A expressão correcta seria 謝謝你們, onde o último caracter (men) forma o plural da terceira pessoa ("vos").
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