Matsumoto (Nishijima) é pressionado pela família a abandonar a namorada, Sawako (Kanno), e a trocá-la por um casamento de conveniência, com grandes benefícios para a sua carreira. Sawako tenta o suicídio e Nishijima sente-se culpado e tenta, desesperadamente, reparar as consequências da sua decisão.
Hiro (Mihashi), um líder Yakuza, recorda-se da mulher que abandonou 30 anos atrás (Matsubara), quando optou por uma vida de fama e de dinheiro. Na despedida, ela disse-lhe que continuaria a trazer-lhe o almoço todos os sábados, ao mesmo banco de jardim.
Nukui (Tageshige), um controlador de trânsito, é um admirador fanático pela cantora pop Haruna (Fukada), a qual, na sequência de um acidente, se isola do mundo exterior e dos fãs.
O último filme de Kitano Takeshi inspira-se em histórias tradicionais do teatro japonês de marionetas, Bunraku, apresentando três situações de puro abstraccionismo romântico, interligadas numa história que flúi de modo uniforme, sobre constantes mudanças de cenário e das personagens enquadradas pela objectiva. A história central, constituindo também aquela com maior proeminência emocional, é a de um casal misterioso, que vagueia por ruas e jardins, unidos por uma corda. Tal como nas histórias com os outros dois pares, a narrativa recorre a mecanismos de flashback, com um ritmo eficaz, embora possa parecer lento a início, fechando cada uma delas com regressos melancólicos a um passado irrecuperável, contrastando com a amarga evolução de cada uma das situações no tempo presente.
Os primeiros momentos do filme, passada a introdução no Teatro Bunraku, recordam, ainda que superficial ou momentaneamente, outro dos filmes de Kitano fora do género Yakuza, o, talvez por isso, menos popular «Ano Natsu, Ichiban Shizukana Umi» [A Scene at the Sea] (1992). Essa semelhança prende-se sobretudo com o tom de algumas cenas e o facto dos diálogos serem relativamente irrelevantes durante boa parte da história ou “segmento” principal: no filme de 1992 tal é uma consequência directa do facto dos protagonistas serem surdos-mudos; aqui são outros factores directamente relacionados com o desenvolvimento da relação, nos primeiros momentos do filme. Não estaremos também longe de «Hana-Bi» (1997), no que toca à relação de Nishi (Kitano) com a sua esposa (Kishimoto Kayoko), durante a viagem que os dois empreendem no segmento final do filme. Em todos os casos, Kitano conta a história usando elementos visuais e sonoros, desvalorizando a importância dos diálogos e colocando o acento tónico nos olhares (nossos e dos seus protagonistas). Há o que se poderá considerar uma pequena referência a «A Scene at the Sea» em «Dolls», num flashback em que vemos uma prancha de surf (as personagens daquele filme eram apaixonados por essa actividade). De qualquer forma, “cenas junto ao mar” são constantes nos filmes do realizador nipónico.
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Kanno Miko (Sawako) e Nishijima Hidetoshi (Nishijima).
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Se há filmes aos quais se pode apontar o dedo e dizer sem preconceitos que se trata de “Arte” – assim, com um A bem nutrido –, «Dolls» pode certamente ser um dos acusados. Pelo menos é um tipo de “arte” mais fascinante do que aquele que resulta de modos de filmar e de contar histórias que recorrem a estruturas narrativas “anti-comerciais”, que o são mais pelo desprezo desse rótulo e do mercado, do que propriamente por existir uma história que pede para ser contada, um processo criativo assente no talento de cineastas ou na qualidade de um texto. «Dolls» é um filme que funciona a um nível mais emocional do que intelectual – não há puzzles ou nós para desatar –, requerendo apenas que nos recostemos e o vejamos de olhos bem abertos. Os momentos introdutórios deixam-nos a pairar, mas a partir do momento em que se fecha o ciclo da primeira história – que não acaba, apenas se clarifica – ficamos completamente presos ao evoluir desta e das outras relações.
A fotografia é deslumbrante e dizê-lo assim, sem mais, parece demasiado fácil. Mas qualquer elaboração, neste momento, soa-me a redundante. As imagens captadas pelo colaborador regular de Kitano, Yanagijima Katsumi, acompanham as várias estações do ano no Japão e as cores primárias parecem querer sair do ecrã, em particular as cores da natureza e dos vistosos trajes do estilista Yamamoto Yohji, à medida que acompanhamos o vaguear de Sawako e Matsumoto. A clareza e a beleza da imagem, mais do que em outros casos, merecem uma boa sala de cinema com uma focagem cuidada, como foi o caso da projecção no Auditori, a sala principal do Festival de Sitges. A música, novamente de Hisaishi Jo – colaborador de Kitano desde «A Scene at the Sea» e de Miyazaki, desde «Kaze no Tani no Nausicaä» (1994) – acompanha momentos de autêntico êxtase visual, e assiste, mais do que condiciona ou potencia, os momentos de maior força emocional.
«Dolls» é tão belo quanto trágico e triste. Kitano não é propriamente conhecido por se preocupar com desenlaces cor-de-rosa nos seus filmes. As conclusões fazem-se sentir como naturais e o encerrar de um ciclo, ainda que não existam para nos fazer sair da sala com um sorriso nos lábios. O mais familiar «Kikujiro no Natsu» (1999) ou o tolo «Minna Yatteruka» [Getting Any?] (1994) serão as mais óbvias excepções. Este não é um filme que se deixa ficar dentro da sala de cinema, enquanto nos dirigimos para outro local, para o jantar ou para o que quer que seja; antes nos acompanha, recusando-se a desvanecer-se na nossa memória. Há fragmentos, conceitos e imagens que perdurarão indefinidamente, ainda que soltos e fora de contexto, e a nossa percepção em relação a eles só se alterará quando regressarmos ao filme e os reintegrarmos nos locais adequados. Em «Dolls», o evoluir da narrativa acompanha as estações do ano e o final não é na Primavera.
«Dolls» é, na minha opinião, o melhor filme de Kitano – superando «Hana-Bi» –, e parece partir novamente, pelo menos em parte, da vontade do realizador de não se deixar “tipificar” e de contrariar expectativas: depois de «Hana-Bi», farto de perguntas sobre a violência associada aos seus filmes, optou por um tom mais familiar em «O Verão de Kikujiro» (1999), onde a violência não tinha presença, voltando a inverter o registo com o brutal «Brother» (2001). «Dolls» não pode, no entanto, ser visto como uma surpresa completa no seio da filmografia de Kitano, cujos melhores filmes não medram na violência pura e simples, desligada de contexto ou complementar ao “entretenimento”, nem se podem integrar em filmes de gangsters/yakuza típicos. Na sua obra, antes de «Dolls», está já patente uma invulgar sensibilidade para filmar dramas emocionalmente intensos (algo marcante nos já citados «A Scene at the Sea» e «Hana-Bi»). «Dolls» vem sim apresentar um refinamento na linguagem visual de Kitano, ao mesmo tempo que destila uma estrutura narrativa mais sóbria e despida de redundâncias e conflitos interpessoais, onde o diálogo quase assume o papel de mero separador entre diversos quadros.
Aqueles que seguem Kitano ou que se sentarem frente ao ecrã sem expectativas – sem pensar nos filmes de acção (?) do realizador – , poderão ser presenteados com uma das maiores experiências cinematográficas e cinéfilas das suas vidas. «Dolls» é um poema sobre obstáculos incontornáveis no caminho do amor, numa perspectiva abstracta, platónica, onde não há lugar ao contacto físico (amor ou violência – ingredientes quase incontornáveis no cinema dito comercial): veja-se o modo belo e simbólico como se celebra a união das duas personagens principais, e o modo, lógico, como se integra (é quase cruel) na sequência narrativa. É também sobre o sacrifício de um perante a indiferença do “outro” e de como certos erros são irreparáveis e nos podem, para sempre, ensombrar o futuro: dois dos protagonistas masculinos optam pela glória ou pelo sucesso, em detrimento do amor; o outro leva longe demais o desejo de se aproximar do amor intangível.
Há muitas formas de violência e Kitano bem as tem sabido ilustrar, por vezes com uma frieza brutal, simplesmente porque essa exposição de sangue é uma consequência directa dos actos cometidas pelas suas personagens e não há razão para a câmara se demitir das suas obrigações nesses momentos. «Dolls» é um filme violento por outras razões. Porque nos agarra às imagens no ecrã e nos prende, mente e coração, às personagens que ali vivem, nos arrasta com elas e depois nos abandona, sozinhos, destroçados, quando os créditos começam a rolar, ainda virtualmente colados à cadeira, indefesos perante qualquer fenómeno relacionado com a gravidade do planeta. Há quem se choque e se ofenda com a violência gráfica de um filme como «Ichi the Killer», mas «Dolls», num plano de análise diverso, é um filme bem mais violento.
Depois de ter estreado em Veneza, o filme de Kitano passou por diversos festivais de cinema e tem sido injustamente ignorado pelos júris. A estreia em Portugal deverá ocorrer algures na primavera de 2003 (de acordo com o agente de imprensa internacional; a Atalanta Filmes não respondeu, em tempo útil, ao pedido de informação).
Imagens gentilmente cedidas por Office Kitano.
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