O "Cyclo" (Le) tem 18 anos e vive na cidade de Ho Chi Min (ex-Saigão) com as duas irmãs – uma mais velha e uma mais nova – e o avô. A família é muito pobre e cada um tem que dar o seu contributo para a subsistência do grupo. A Irmã Mais Nova (Pham Ngoc Lieu) engraxa sapatos; a Irmã Mais Velha (Tran Nu) leva água ao mercado e cozinha num restaurante. De manhã, ambas frequentam a escola. O avô (Le Dinh Huy) remenda pneus de bicicletas e enche-os de ar, mas o trabalho é muito duro para a sua idade e já sente muitas dores. O rapaz conduz um táxi a pedais ("cyclo"), por conta da "Patroa", que lidera também uma série de actividades ilícitas, coordenadas pelo "Poeta" (Leung). O gang está envolvido em roubos, sabotagem de mercadoria da concorrência, tráfico de droga, prostituição, sem excluir o homicídio. Um dia, o "Cyclo" vê-se despojado do seu ganha-pão e forçado a colaborar noutros serviços para a "Patroa".
Vencedor do Leão de Ouro de Veneza, em 1995, «Cyclo» traz Tran Anh Hung ao Vietname, onde desta vez pôde filmar in loco, em interiores e nas ruas da cidade de Ho Chi Min. «O Odor da Papaia Verde» (1993), a sua primeira longa-metragem, é um filme mais intimista sobre a vida de uma rapariga pobre, que vem do campo trabalhar para a cidade, apresentando alguns momentos da sua vida aos 10 e aos 20 anos. O governo do Vietname – que impediu as filmagens no país – deve ter ficado satisfeito com a falta de afirmações sociais ou políticas óbvias ou perigosas, num filme que ganhou bastante notoriedade internacional, tendo decidido, desta vez, permitir que Tran filmasse em Ho Chi Min. E o realizador não se fez rogado, aproveitando a oportunidade para compor inúmeros planos contínuos, a comprovar que filma em interiores reais e na genuína cidade vietnamita, explorando as capacidades técnicas e artísticas do seu cinematógrafo, Benoit Delhome. Para obter um maior realismo, ou talvez para evitar burocracias, alguns planos foram rodados com uma câmara escondida, nomeadamente aqueles que enquadram o "Cyclo" a pedalar pelas ruas da cidade.
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Leung Chiu-wai (O Poeta) e Tran Nu Yen Khe (A Irmã Mais Velha). |
O governo vietnamita arrependeu-se de ter autorizado as filmagens e o filme foi proibido. Isto porque «Cyclo» está muito longe de ser o drama introspectivo e contemplativo que foi «O Odor da Papaia Verde» ou o seu título seguinte, «A la Verticale de L'Été», realizado apenas 5 anos depois e novamente no território natal de Tran (mas trocando Ho Chi Min por Hanói). «Cyclo» não deixa de ser um drama familiar, continuando a desenvolver temas já introduzidos na obra anterior de Tran («Papaia», mas também nas curtas «La Femme Mariée de Nam Xuong», 1989 e «La Pierre de L'Attente», 1991), nomeadamente a ausência da figura paternal, ou a sua corrupção, e as consequências na formação dos filhos, cedo abandonados e obrigados a sobreviver sob condições adversas. Mas «Cyclo» é também uma história com gangsters e crimes violentos, que parece ter inspirado o distribuidor inglês a escrever uma série de tolices na capa do vídeo, com comparações com Tarantino, Scorsese ou «Trainspotting», susceptíveis de enganar os mais desprevenidos. Há aqui alguns tiros e cenas que resultam em alguma abundância de sangue, mas estamos completamente fora do rótulo de “filme de acção”. Tran não está interessado na exploração do "glamour" associado a alguns filmes de gangsters: uma das cenas mais gráficas apresenta duas personagens quase dançando uma com a outra – enquanto o sangue vai sendo derramado –, enquadradas em plano picado, durante um muito lento travelling. O quase surrealismo desta cena, que dá ênfase ao inferno interior do executor, em prejuízo do sofrimento da vítima, quase reduzida ao estatuto de símbolo, está mais próxima de Godard ou Hartley, do que de qualquer mestre do cinema de acção. Num outro momento, um anónimo secundário é morto, de modo igualmente violento, e Tran contraria novamente os clichés do cinema de género, apresentando um acto horrendo de modo cru: por um lado, sem construir tensão até uma imagem-choque, de onde nos afasta de imediato (obriga-nos – ou deixa-nos, conforme o ponto de vista – a assistir a todos os efeitos derivados do acto), por outro, sem procurar dar qualquer espécie de contributo para uma valoração moral por parte do espectador – não há razões sequer; é um crime no meio de tantos outros, agravado, sob os nossos olhos, por se tratar de uma simples "lição".
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O Cyclo é inicialmente forçado a enveredar por uma "carreira" de crimes, mas não deixa de se seduzir pelo poder que tal lhe confere – poder de destruir, de matar, mas também o poder económico. A sua história é a da perda da inocência que lhe restava. A Irmã Mais Velha encarna não só a inocência, mas também a ingenuidade e a pureza (física e moral), deixando manchar a sua alma devido ao amor – de entre todas as coisas... – pelo poeta. O Poeta é uma personagem em luta consigo mesmo; uma veia de artista flui num homem responsável por crimes violentos, envolvido também em prostituição, cedendo mulheres para a realização dos mais variados fetiches. Elas, sem aparente excepção, não podem passar sem ele. Mas o Poeta, ao contrário dos seus colaboradores mais próximos – o "Dente" e a "Navalha" –, apesar de não se deter perante nada, vive permanentemente atormentado pela violência e pelos crimes que comete, bem como pela corrupção moral dos inocentes (o Cyclo e a Irmã), de que é responsável directo. O derramar de sangue das suas vítimas – tal como o que flúi do seu nariz, sem aviso prévio – parece ser algo natural, incontornável; algo de que não pode gostar, mas que tem de ser levado a cabo. A relação com o pai, da qual apenas podemos extrapolar toda a extensão, explica em parte a sua inadequação interior a algo que, exteriormente, parece executar com grande primor. A Patroa seria a nossa vilã da praxe em qualquer filme de "género". Afinal é a "mente criminosa" que tudo controla, a partir do conforto do seu lar. Mas é também uma mãe, que vive, acima de tudo, para o seu filho – um jovem da idade do "Cyclo", mas "louco" (a personagem é creditada como "O Filho Louco"). Temos aqui novamente o tema da ausência da figura paternal, da qual nenhuma personagem está livre: a Patroa envolveu-se jovem com o pai do seu filho, que abandonou o lar e as suas responsabilidades. O modo como a personagem é filmada leva a algumas dificuldades da nossa parte para a censurarmos, uma vez que as suas actividades criminosas surgem desligadas do seu pacato dia-a-dia, em casa, junto do filho. Tran filma-lhe os pequenos gestos, das mãos, dos pés, a reparar um leque; não há sorrisos maquiavélicos, nem assistimos à transmissão das ordens para matar aos seus subalternos. É tudo muito banalmente caseiro, acolhedor, confortável. Não podemos odiá-la, não pode ser uma gangster; é apenas uma senhora simpática. A própria cidade é apresentada como uma personagem, através da inserção de diversos segmentos sem relação directa com a acção, curtos momentos da vida dos seus cidadão anónimos, e as ruas e edifícios são observados longamente, por mais tempo do que o requerido para situar a cena seguinte.
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Uma relação desequilibrada. À direita: "Creep"... |
Desde muito cedo vemos as personagens a seguir um caminho que não poderá ser o da felicidade. Tran (também autor do argumento original) leva cada um deles a um caminho de perdição ou redenção que não surge ligado a castigos ou recompensas pelos seus actos. Estabelecem-se alguns paralelos entre eles: o Cyclo e o Filho Louco ou o Poeta e o Filho Louco ou ainda a Patroa e o Cyclo. Estas ligações são feitas através de elementos visuais ou de adereços de cena: a tinta e o peixe unem o Filho Louco, do mesmo modo que este é ligado ao Poeta através de um outro elemento (que não se nomeia para evitar revelar pormenores da conclusão). A Patroa, por sua vez, coloca-se também na “posição” do «Cyclo», no momento de todos os choques, na entrada para o ano novo. Tran fala na “adopção” do Cyclo pela Patroa (quando o rapaz assume, simbolicamente, a posição do filho dela), mas podemos também ver essa representação em relação à Irmã Mais Velha, no momento em que “vê” a fotografia viva do Poeta, com a sua mãe.
[O parágrafo seguinte não deve ser lido antes do visionamento do filme. Para ler seleccione a área em branco.]
As personagens, órfãs, são assim “adoptadas”, salvas, no final do filme; apesar de não se encontrarem numa posição muito diferente daquela em que as conhecemos – apenas despojadas da sua inocência –, estão agora melhor preparados para sobreviver no futuro. Tran que assim define a conclusão de modo optimista, em contraste com a impressão mais directa no espectador, recusa os símbolos externos ao filme, defendendo a tese de que o simbolismo deve conter-se dentro da obra cinematográfica, e cortando pretensas teorias analíticas: a tinta, o carro de bombeiros ou o peixe, servem apenas para unir as personagens, sendo destituídos de qualquer outro poder representativo. Faz sentido que o realizador enjeite essas construções intelectuais, pois a sua obra é sobretudo visual, contada com cores, imagens, gestos, silêncios, onde o diálogo tem uma importância minimal, algo para que em muito contribuiu o trabalho do director de fotografia francês, Benoît Delhomme.
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