No Japão, pouco depois da viragem para o Séc. XXI, a recessão económica e as elevadas taxas de desemprego agravam um conflito de gerações que leva os jovens a rebelarem-se contra o poder instituído – dos "adultos". Para tentar controlar a situação, o governo decide aprovar uma lei que passará a ser conhecida como a "Lei BR". O programa "Battle Royale" consiste em sortear uma turma de um qualquer liceu do país, transportá-la para uma ilha deserta e forçar os alunos a um jogo bué radical:
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O prazer infantil da vitória.
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– Só pode haver um vencedor;
– O vencedor terá de ser o único sobrevivente;
– Se em três dias existir mais de um participante vivo, todos perdem (o jogo e a vida).
Assim, cada um dos 42 alunos e alunas recebe um saco de conteúdo aleatório (para equilibrar as vantagens naturais) que pode consistir numa arma letal ou numa grande inutilidade, como uma tampa de panela ou um corta-unhas. Em seguida são entregues à sua sorte e que comece a matança.
«Battle Royale» levantou grande polémica no Japão, não pela violência gráfica, a qual não é mais elevada do que a presente em muitos outros thrillers ou filmes de horror nipónicos, mas pela temática, i.e, a mensagem social e política que apresenta, por detrás do jogo mortal. O facto da história não ter optado pela aproximação (sempre actual) de um formato reality show, com cobertura televisiva ou para entretenimento das massas, mas antes apresentar o grupo de jovens forçados a dizimarem-se por virtude de uma solução política, para fazer face à contestação perante a situação socio-económica, em muito poderá justificar o burburinho que se gerou, que passou inclusive pela vontade em tentar censurar ou proibir a exibição do filme. A polémica, como quase sempre sucede, serviu apenas para promover e aumentar as receitas de bilheteira de uma obra que, alguns meses depois, foi relançada com uma nova montagem e mais cenas.
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Noriko (Maeda) e Shuya (Fujiwara).
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A matança e a violência geral patentes no filme surgem em contextos dramáticos de valor oposto; do drama à comédia. Para muitos espectadores, talvez se fique entre o horror e o drama, mas não é só o vídeo com as instruções, apresentado por uma menina com uma voz de boneco de anime, e as respostas, na sala, por parte do professor Kitano (o próprio 'Beat' Takeshi), que tenta entusiasmar os alunos horrorizados, sem ainda terem conseguido aceitar a situação, que se pode englobar no conceito de "comédia". De 6 em 6 horas, apresentam-se resultados do combate e sempre que alguém morre o seu nome e número de estudante aparece no ecrã.
O "gore" não é particularmente forte para o standard do cinema Japonês mais condimentado, como acima referi, mas há muito sangue a espirrar defronte da câmara, sem que se abuse de desmembramentos ou decapitações (apesar dos alunos serem controlados por um colar explosivo, algo já usado noutros filmes série B e que constitui um sistema similar a algo já implementado no mundo real, como medida de coacção, mas na forma de pulseiras, discretas e sem efeitos letais).
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Chigusa (Kuriyama) não quer um namorado novo.
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Poder-se-ia dizer que o filme quase se esgota na sua premissa: um grupo de jovens a matarem-se uns aos outros. Mas os esquemas de sobrevivência que se geram, com a formação de grupos – cuja integridade será posta à prova –, na prossecução de interesses pontuais de defesa física ou para obtenção de armas e comida, bem com uma série de relações amorosas e de amizade, condenadas à extinção, são elementos que vêm adensar a narrativa. Haveria muito a desenvolver em termos de relações sentimentais (ele ama-a, mas tem de lhe cortar a cabeça, etc.), mas «Battle Royale» não perde muito tempo com sentimentalismos, remetendo o mais previsível e incontornável destes cenários para um flashback, havendo uma preocupação maior nas cenas de eliminação da concorrência, acompanhadas por uma banda sonora com música clássica relaxante, que poderíamos estar a ouvir enquanto bebericamos um martini, confortáveis num sofá, à espera de mesa no restaurante. Por outro lado, os esfaqueamentos, degolações, rebentamentos, varrimentos por metralhadora, ou outras mortes mais simples e menos gráficas, não são estilizadas com infindáveis câmaras lentas ou ângulos modernaços em lentes que distorcem a perspectiva.
«Battle Royale» consegue apresentar uma galeria diversificada de personagens, com reacções e estratégias de combate ou resistência (ou de desistência) variadas, um pouco como um jogo de computador shoot-'em-up mais complexo, de onde se destacam, desde logo, opositores mais sanguinários, entre os quais se inclui Mitsuko (Shibasaki), uma jovem que se encontra naqueles dias do mês, preocupada com a maquilhagem e particularmente satisfeita em mutilar rapazes. A caracterização de algumas personagens é cuidada, geralmente realista, sem que caminhe muito para o caricatural. Num extremo, temos alguns verdadeiros psicóticos, no outro, temos o casal puro e inocente – Shuya (Fujiwara) e Noriko (Maeda) –; aqueles que, acima de quaisquer outros, nos levam a dizer que não merecem “mesmo” estar metidos naquilo. No meio, uma série de jovens normais, que tentam lidar o melhor que podem com uma situação extrema. «Battle Royale» é um bem sucedido pacote duplo: é divertido, sentimental e com uma grande componente de entretenimento, mas também oferece algo sobre que reflectir, no contexto das sociedades “modernas”, do Século XXI.
Vd. texto de Hugo Gomes |