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Na Galáxia de Johnnie To Kei-fung
Entrevista e perfil do mais dinâmico cineasta de Hong Kong pós-retrocessão.

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A obra de To Kei-fung é essencial e incontornável no panorama do cinema moderno de Hong Kong. To iniciou a sua carreira, como muitos outros cineastas e actores, nas fileiras da emissora TVB. Em 1980, realiza a sua primeira obra para cinema, «The Enigmatic Case», regressando à televisão para ganhar experiência como produtor durante meia dúzia de anos. Os sucessos comerciais começaram com «Eight Happiness» (1988), uma comédia com Chow Yun-fat e Jackie Cheung Hok-yau, que se tornou número 1 nas bilheteiras locais, o que sucederia igualmente com «All About Ah Long» (1989), com Chow e Silvia Chang e «Justice my Foot» (1992), com Stephen Chow Sing-chi e Anita Mui Yim-fong.

«Heroic Trio» de To e «Expect de Unexpected», uma produção da Milkyway, assinada por Patrick Yau Tak-chi.
Se «Heroic Trio» (1993) (co-realizado com Ching Siu-tung) permanece provavelmente o título da sua filmografia mais popular no Ocidente — devido a uma certa componente estética que pode remeter para a manga, mas também por ser quase um símbolo do que se podia esperar do cinema de Hong Kong à época (comédia, acção, emoção, a sensação de que não há limites e tudo é possível acontecer, por mais chocante ou tolo que seja) — foi com a criação da produtora Milkyway Image que o cinema de To começou a chamar a atenção dos críticos e a ter presença regular em festivais de cinema ocidentais. A partir de 1996, To realizou ou produziu uma série de filmes negros e irónicos, que procuraram desconstruir referências do filme de tríades ou do chamado heroic bloodshed, paradigmaticamente simbolizado na pessoa de John Woo. Aí se incluem títulos como «Beyond Hypothermia» (1996), «The Odd one Dies» (1997), «The Longest Nite» (1998) ou «Hero Never Dies» (1998). Esta fase foi muito bem representada numa rara Mostra de Cinema de Hong Kong, realizada no Fórum Lisboa, em finais de 1999. Tal como refere na entrevista que nos concedeu, a partir de certa altura a produtora teve de procurar ir ao encontro do mercado, tentando lançar filmes mais populares, nomeadamente comédias como «Needing You...» (2000), ao mesmo tempo que continuaria a produzir títulos mais arriscados e pessoais.

A obra de Johnnie To não pode ser dissociada do seu papel enquanto produtor. Há uma marca pessoal em muitas das obras por si produzidas, ainda que tal possa decorrer unicamente da escolha de argumentos ou da selecção de realizadores. O último filme de To, «PTU» (2003) foi exibido no Festival de Berlim deste ano, tendo passado também por Udine. Para os que não estiveram presentes em nenhum desses festivais — foi pena ter sido retirado de Deauville —, o DVD de Hong Kong não deverá demorar. [LC]


Cinedie Ásia remeteu algumas questões a To Kei-fung, que teve a amabilidade de ceder algum do seu tempo para lhes responder. Por Hugo Freire Gomes e Luis Canau.



Cinedie Ásia: Houve algum momento da sua carreira em que tivesse sentido estar a fazer algo mais do que simples entretenimento? Pode isolar um filme que marque essa transição?

Johnnie To: Em 1994, depois de terminar «Mad Monk», fiz uma pausa de um ano para reflectir no meu próximo passo. Depois de passar 10 anos a fazer filmes comerciais, quis realizar obras mais pessoais. Segui nessa direcção com o meu filme seguinte, «Loving You» [1].

To dirige Lam Suet em «PTU» (2003).
Johnnie To tem colaborado com outros cineastas, como Ching Siu-tung e Wai Ka-fai. Por outro lado, teve uma experiência não totalmente satisfatória realizando um filme para Tsui Hark. Pensa que aqueles que realizam filmes por si produzidos têm melhor sorte, isto é, tenta imprimir a sua “marca” nesses trabalhos ou confia no realizador, permitindo-lhe desenvolver uma visão pessoal?

Como produtor encorajo sempre os realizadores a seguirem os seus estilos próprios e tento não alterar ou tomar conta dos seus filmes. Sou realizador de filmes desde há muitos anos e tenho muito respeito por aqueles que trabalham na mesma profissão.

Será justificável apontar simbologia nas personagens femininas de «Heroic Trio», nomeadamente no âmbito de um comentário sobre uma China reunificada [2]? Ao realizar a sequela «Executioners», decidiu, desde logo, não deixar espaço para novos desenvolvimentos, mesmo que as personagens se viessem a revelar populares?

Escolhi as três actrizes [3] porque naquela altura os possíveis protagonistas masculinos eram demasiado caros. Serviu também como experiência para testar as reacções do mercado a um elenco principal exclusivamente feminino. Infelizmente, «Heroic Trio» e «The Executioners» não foram muito bem sucedidos nas bilheteiras. Acho que os filmes são muito mais apreciados fora de Hong Kong.

Nome em chinês: 杜琪峰
Nome em cantonês: To Kei-fung
Nome em mandarim (pinyin): Du Qifeng (Dù Qí Fēng)
Nome inglês: Johnnie To
Filmografia seleccionada

Como realizador:

Bik Shui Hon Saan Duet Meng Gam/The Enigmatic Case, 1980
Baat Sing Biu Choi/The Eight Happiness, 1988
A Long Dik Goo Si/All About Ah Long, 1989
Sam Sei Goon/Justice, My Foot, 1992
Chek Geuk Siu Ji/The Barefooted Kid, 1993

Dung Fong Saam Hap/The Heroic Trio, 1993
Yin Doi Ho Hap Chuen/Executioners, 1993
Chai Gung/The Mad Monk, 1993
Miu Mei San Taam/Loving You, 1995
Tin Yeuk Yau Ching IIIFung Feng Gaai Yan/A Moment of Romance III 1996
Sap Maan Feng Gap/Lifeline, 1997

Chan Sam Ying Hung/A Hero Never Dies, 1998
Aau Chin/Running out of Time, 1999
Cheong Feng/The Mission, 1999
Joi Gin A Long/Where a Good Man Goes, 1999

Goo Laam Gwa Lui/Needing You..., 2000
Kwong Sau Wooi Chun /Help!!!, 2000
Chung Miu Yim/Wu Yen, 2001
Sau Geun Laam Lui/Love on a Diet, 2001

Chuen Chik Saai Sau/Fulltime Killer, 2001
Aau Chin 2/Running out of Time 2, 2001
Lik Goo Lik Goo San Nin Choi/Fat Choi Spirit, 2002
Ngo Joh Aan Gin Diy Gwai/My Left Eye Sees Ghosts, 2002
Baak Nin Hiu Who/Love for All Seasons, 2003
PTU Dut Jung Bo Dui/PTU, 2003

Como produtor:

Tin Yeuk Yau Ching/A Moment of Romance, 1990
Tin Yeuk Yau Ching Ji Tin Cheung Dei Gau/A Moment of Romance 2, 1993
Lip Jeung 32 Diy/Beyond Hypothermia, 1996
Chui Hau Poon Kuet/Final Justice, 1997

Yat Goh Chi Tau Dik Daan Sang/Too Many Ways to Be No. 1, 1997
Leung Goh Chi Lang Wood Yat Goh/The Odd One Dies, 1997

Hung Biu Gai/Intruder, 1997
Aau Dut/The Longest Nite, 1998
Fai Seung Dat Yin/Expect the Unexpected, 1998
Tim Yin Mat Yue/Sealed with a Kiss, 1999
Miu Yan Ga Sai/Spacked Out, 2000
Miu Haan Fook Wood/Second Time Around, 2002

Para uma filmografia mais completa e actualizada consulte a Hong Kong Movie Database e a Internet Movie Database.

Com o acentuado decréscimo de produção em Hong Kong, em meados dos anos 90, falou-se no final de um “Período Dourado”. Quando a Milkyway começou a produzir filmes como «The Odd one Dies», «A Hero Never Dies» ou «The Longest Nite», algumas pessoas consideraram estarmos perante outra “Nova Vaga”. Como vê a importância da sua produtora no seio do actual estado da produção em HK e que comentário faz aos que lamentam que o cinema local nunca voltará a ser como era nesse “Período Dourado”?

A indústria entrou numa recessão na mesma altura em que a Milkyway Image foi fundada. É algo irónico, mas isso deu-nos a força motriz para trabalharmos mais arduamente. A única forma de melhorar o estado da indústria é fazer mais e melhores filmes. No início, produzimos uma série de filmes pessoais, mas mais tarde percebemos que o mercado precisava de filmes comerciais para fazer o público regressar às salas de cinema. Hoje, eu e os meus parceiros estamos ainda a trabalhar na direcção desse mesmo objectivo.

Foi reconhecido como um “autor”, pelo menos no Ocidente, muito tardiamente — tendo em conta que iniciou a sua carreira no cinema em 1980 —, quando cineastas como John Woo, Tsui Hark ou Ronnie Yu se mudaram para Hollywood [4]. Sente-se um “autor tardio” ou sente ter beneficiado, de algum modo, com o espaço livre deixado pelos cineastas que emigraram?

O meu único objectivo é fazer filmes dos quais eu goste. Sejam para o mercado comercial ou para festivais de cinema. Sei que ainda tenho muito que aprender e espaço para me aperfeiçoar. O que desejo é que venham novos realizadores que reinjectem criatividade na indústria, para que os filmes de Hong Kong sejam algo mais do que eu, Tsui Hark ou John Woo.

Alguns críticos têm demonstrado alguma confusão ao passarem da análise de filmes como «The Mission» ou «Running out of Time» para outros populares e comerciais, porque tais variações não se enquadram num conceito de “autor” que sugere um estilo reconhecível e temas comuns ao longo de uma obra. Como encontra o equilibro entre Johnnie To, o autor, e Johnnie To, o realizador de filmes comerciais?

Como disse anteriormente, a Milkyway Image traça uma direcção clara no que diz respeito ao género de filmes que quer produzir. Separamos os nossos filmes em duas categorias: os filmes comerciais e os filmes pessoais. Como realizador de cinema, tenho responsabilidade perante os meus investidores e a minha audiência. Espero que os críticos possam tomar o sucesso de filmes como «Needing You…» como prova de que as audiências de Hong Kong continuam a apoiar grandemente as produções locais.

Se Hollywood tem tentado implementar acção “ao estilo de Hong Kong” em muitos filmes (com resultados desastrosos na maioria dos casos), a indústria de Hong Kong tem, de certa forma, tentado produzir filmes “à moda de Hollywood”, com maiores orçamentos, efeitos digitais, etc. Como vê o futuro da indústria local e pensa que há o risco de que se façam filmes indistintos — não chegam a ser ao jeito de Hollywood, nem retêm a frescura, dinamismo e originalidade que tem caracterizado as produções locais?

O futuro dos filmes de Hong Kong reside no território continental da China. É um mercado que tradicionalmente aceita os filmes de Hong Kong e estou certo que para o futuro conseguiremos expandir a sua penetração. Em termos estilísticos, penso que o que é importante não é se os filmes de Hong Kong se assemelharão ou não aos de Hollywood, mas se nós, os cineastas locais, conseguimos criar ideias novas. O cinema de Hong Kong tem sido muito inventivo nos últimos 50 anos e espero que essa tendência se mantenha.

To Kei-fung
Johnnie To Kei-fung.
Houve quem comparasse «PTU» a «Assalto à 13ª Esquadra» de John Carpenter. O que lhe parece essa comparação?

Como não vi o filme de Carpenter não posso traçar quaisquer comparações. [5]

O que podemos esperar de Johnnie To para o futuro próximo? Tendo assumido no passado o seguir das tendências, para dar ao mercado o que o mercado quer, seria de esperar que viesse a realizar um wuxia na sequência do sucesso de «Hero»?

2003 será um ano importante para mim e para a Milkyway Image, pois decidimos efectuar uma mudança de rumo. Este ano as audiências poderão ver filmes de novos estilos por nós produzidos e um deles poderá ser uma obra mais pessoal do género de «PTU».


[1] To sobre «Loving You»: “Não tive de pensar no Mercado quanto fiz Loving You porque o orçamento foi de apenas 6 milhões de dólares de Hong Kong, e, depois de fazer alguns filmes, sabia que iria, sem sombra de dúvidas, recuperar o dinheiro para o investidor. Como não tive de me preocupar com a reacção da audiência, pude fazer o filme exactamente como queria.” Em «Mad Monk», To Kei-fung dirigiu o “rei da comédia” Stephen Chow Sing-chi e o actor obrigou a muitas alterações no guião, de modo que a visão original do realizador se perdeu. (Vd. entrevista a Miles Wood, in “Cine East”, Fab Press)

[2] A premissa de «Heroic Trio» inclui um plano maquiavélico para criar um Imperador da China e há quem – pertinentemente? – sugira que as três heroínas simbolizam Hong Kong (na altura ainda sob administração britânica), Taiwan e República Popular da China. (V.g. texto de Richard A. Akiyama, em “Sex and Zen and a Bullet in the Head”, Titan Books.)

[3] Michele Yeoh Chu-keng, Maggie Cheung Man-yuk e Anita Mui Yim-fong.

[4] No caso de Tsui, claro, tratou-se apenas de uma passagem.

[5] To na verdade partiu do princípio que nos referíamos a um novo filme de Carpenter (o título chinês não terá muito a ver com o original). Em todo o caso, assumimos que não conhece a referida obra, pois, de contrário, provavelmente diria que não tinha visto o novo de Carpenter mas que se havia inspirado num mais antigo.

20/05/2003

cinedie asia © copyright Luis Canau.