Kaneshiro é um jovem marginal com tendências para entrar em confrontos suicidas. Viciado no jogo, não desiste enquanto não gasta tudo, vira a mesa, é espancado e atirado para a rua, abandonado a esvair-se em sangue. Reúne as forças que ainda lhe sobraram e consegue voltar ao local, onde recebe uma segunda dose de castigos corporais. Desesperado, procura um contrato para matar, como modo de obter dinheiro fácil e em grande quantidade. Mas, assim que recebe um adiantamento, decide voltar a jogar. Só que agora a sorte muda, e com muito dinheiro no bolso parece-lhe fazer mais sentido subcontratar, livrando-se de todas as preocupações morais e legais inerentes a um assassinato. Surge então uma mulher (Lee Yeuk-tung) disposta a candidatar-se, mas tão inadequada para o serviço como ele.
O casal de assassinos de «The Odd One Dies» é tudo menos um exemplo de glamour ou coolness, de entre diversos estrangeirismos aqui aplicáveis. Socialmente marginalizados, por vontade própria ou por uma sucessão de acontecimentos na vida fora do seu controle, também não se integram nas estruturas do mundo do crime, submetendo-se aos serviços de gangsters como meio de subsistir, mas também, para além disso, como uma estranha busca masoquista pelo falhanço. As suas chances de sucesso são tão pequenas e, tanto um como outra, se esforçam por uma oportunidade de fracassar, colocando a vida em risco, a meio caminho de um objectivo onde a morte parece ser a recompensa mais fácil de atingir.
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Kaneshiro abusa da sorte. |
As limitadas possibilidades de sucesso dos personagens são ilustradas pela presença marcante do jogo, mas especialmente pelo título do filme, que, no original Chinês, se traduzirá por algo como "de entre os dois apenas um pode viver". E, de facto, desde o início não se auguram bons resultados finais, para um ou para outro. À medida que se aproxima o momento da execução do contrato, Lee e Kaneshiro conhecem-se melhor (incluindo na acepção bíblica do termo), e é a partir daí que o filme resplandece. Isto é, quando o amor interfere no crime e quando pende a decisão de entre os dois quem irá matar um gangster Tailandês, num local de onde a fuga é virtualmente impossível. Enquanto não chega a hora fatal, os dois deambulam pelas ruas da cidade ou por hotéis de má reputação, alternando entre fugir do outro ou procurá-lo.
O filme, solidamente construído a partir de um argumento de Wai Ka-fai, vive quase exclusivamente da presença e do carisma dos dois jovens actores, misturando quadros humorísticos semi-surreais, como o corte repetido dos dedos de um "Big Brother", e consequente corrida dos subalternos em busca de um balde de gelo, ou a construção do estilo ingénuo de Kaneshiro, com um carro desportivo podre de velho e um telefone móvel de dois quilos, e o romance desesperado que frutifica entre os dois personagens até então isolados de tudo e de todos e por isso sem nada de importante a perder.
A frequência com que se mostra Takeshi Kaneshiro a correr, por corredores ou escadas de edifícios ou por entre veículos em ruas movimentadas (o que parece perigoso, já que é o actor e não um duplo), poderá remeter para «Chungking Express» (1994), e é curioso que a influência nos filmes recentes, sob um cenário de crime, seja mais de Wong Kar-wai do que de mestres do cinema de acção. A tendência é de, pelo menos parcialmente, explorar outros territórios dentro de um mesmo cenário, existindo uma maior dedicação aos dramas internos dos personagens, com prejuízo de virtuosismos estéticos da sangria nas paredes e das infindáveis cápsulas vazias tilintando no chão. Também se opta por evitar resoluções demasiado definidas e uma das imagens mais marcantes de «The Odd One Dies» é "um dos dois" suspenso no ar, sem que o cineasta se digne a apresentar-nos o final do salto. Entretanto, "o outro", tendo prometido não ler jornais ou ouvir rádio, ronda as bancas e o típico bar com o costumeiro televisor estrategicamente colocado. Simples e belo.
Vd. Mostra de Cinema de HK, Lisboa 1999 |