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JIFF 2006

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II — Filmes


Uma vez que a minha presença na Coreia do Sul se destina sobretudo a ter um contacto mais próximo com o cinema local, dei primazia ao visionamento de filmes coreanos, ainda que os mesmos não constituíssem a fatia mais relevante das secções competitivas do festival. O que não quer dizer que não tenha havido um intuito de assistir à projecção de obras de outras proveniências, de modo a permitir uma visão geral do JIFF e das suas selecções.

Durante os nove dias do festival, assisti a nove longas-metragens coreanas, duas japonesas, duas chinesas, e sete de outros territórios. Foi também possível ver um número razoável de curtas coreanas: cinco sessões, para um total de 26 obras.

| 1. Coreia |

A produção de origem sul-coreana apresentada pelo JIFF foi variada, tendo em conta as várias secções onde as obras se integravam; desde o arthouse ao comercial, do melhor ao com pouco interesse.

Posters (de cima para baixo): «Magicians», «Blossom Again» e «Inner Circle Line».
O destaque vai para «Magicians» («Mapeobsadeul»), de Song Il-gon, realizador de «Git» e «Spider Forest» (ambos 2004), concebido para o projecto Digital Short Films by Three Filmmakers 2005, agora remontado para o formato longa-metragem. O termo “remontado” não deixa de ser curioso, num filme que se apresenta como sendo constituído por um único take. Song e alguns dos actores estiveram presentes e frisaram o facto de muitas pessoas se deixarem prender pelo conceito de one take film, evitando apreciar o filme para além disso.

«Magicians» fascina, mesmo que demoremos um pouco a ultrapassar a questão do eventual gimmick técnico ou nos ocupemos a tentar identificar cortes escondidos. A concepção formal serve um fluir narrativo em muito assente no teatro e na mímica, com flashbacks integrados com um encanto minimal, onde as personagens mudam de sala, de “cena” e de tempo narrativo, trocando de roupa e caracterização en passant, sempre acompanhadas pela câmara. A história envolve um grupo de pessoas que se reúne num final de ano para recordar uma amiga comum — todos faziam parte de uma banda (“Os Mágicos”) —, que se suicidou alguns anos antes.

«Blossom Again» («Sarang Ni», de Jeong Ji-wu («Happy End»), é um filme bem sucedido a nível técnico, que só peca pelo texto nos relembrar ingredientes muito familiares, ainda que misturados de forma diferente e convincente. Uma mulher de trinta e poucos anos envolve-se com um adolescente de 17, que lhe recorda o seu primeiro amor (fisicamente, mas também tem o mesmo nome). É complicado abordar a narrativa sem a resolver para o leitor, mas digamos que existem algumas surpresas, a nível “fantástico” ou não, que nos podem remeter para outros filmes sul-coreanos produzidos nos últimos anos. Em todo o caso, a eficaz execução e o trabalho dos actores, em particular de Kim Jeong-eun, no papel principal, não nos dão o tempo por mal empregue. O final deixa possibilidades a pairar, o que constitui um valor acrescentado.

Existiam expectativas em relação a «Inner Circle Line» («Naemusunhwanseon»), primeira longa de uma jovem realizadora que estudou em Chigago, Cho Eun-hui. O filme aborda as dúvidas de algumas personagens amarguradas que se vão cruzando, incluindo uma DJ e um condutor de comboios do metropolitano que, por acaso(?), partilham o mesmo nome.

A realizadora citou influências de cinema europeu de autor — Kieslowski, sobretudo «La Double Vie de Veronique», parece ser uma referência marcante para alguns cineastas coreanos —, mas parece-me que também há aqui um pouco de Tsai Ming-liang (um plano muito longo com a reacção de uma personagem faz lembrar «Vive L'Amour»). Existem ideias e conceitos que se experimentam ao longo do filme mas que não resultam. No entanto, creio que é de esperar que Cho venha a criar algo de interessante no futuro.

«Don't Look Back» («Nae Cheongchunegae Goham»), o filme de encerramento, é outra estreia nas longas-metragens, desta vez de Kim Yeong-nam. A sessão oficial de encerramento estava já esgotada na manhã do dia anterior — a minha ID de guest não permitia levantar bilhetes com outra antecedência —, mas foi possível optar por uma projecção matinal, precedendo a conferência de imprensa de encerramento do festival, onde esteve presente o realizador do filme e dois actores.

O estilo arte e ensaio de «Don't Look Back» não é estranho no cinema europeu, mas o realizador parece ainda preso ao formato das curtas-metragens. Três histórias que se desenrolam sem intenções de as resolver do ponto de vista narrativo. Le mal de vivre x 3. A apreciação pode ter sido prejudicada por desconhecer a fragmentação, ficando algo desiludido com o desaparecimento das personagens da primeira história.

«Heavenly Path» («Cheongsangkowon»), o único título coreano apresentado na secção Digital Spectrum, segue o caminho de um homem em busca de uma amiga (ou talvez namorada) que viajou para os Himalaias alguns anos antes. Misto de road movie e documentário, com uma estrutura básica, poucos diálogos, é um filme que é sobretudo para “ver” — há planos de vários minutos, apenas com um jipe a circular pelas vastas planícies tibetanas —, sem esperar respostas.

«Princess Aurora», com Eum Jeong-hwa.
«Romance», com Cho Jae-hyeon («Bad Guy») e Kim Ji-su («This Charming Girl»).
No âmbito dos filmes mais comerciais, vimos «Princess Aurora», «Romance» e «All for Love». Este último, «Nae Saeng-ae Gajang Areumdaun Iljuil», interliga uma rede de personagens com humor ligeiro, romance e um pouco de drama. E a mistura não funciona nada mal, graças a um argumento controlado, personagens interessantes e com graça. As relações incluem um polícia bruto com uma psicóloga desinibida, o proprietário de um prédio com a mulher que aí gere um café e um ex-jogador de basquetebol com uma menina internada, que pode ser a sua filha — situação explorada por um programa de TV realidade.

Quanto a «Princess Aurora» («Orora Gonju»), protagonizado por Eum Jeong-hwa — também presente em «All for Love» —, não há muito a dizer. Thriller com uma psicopata vingativa (cuja identidade nunca é um mistério), que deixa autocolantes de uma personagem de animação nos locais dos crimes. Descobrimos a motivação, um trauma, eventual má aplicação da justiça, mas as justificações para a morte de cada uma das vítimas parecem um pensamento a posteriori, atabalhoadamente revistas em flashback. O filme parece indeciso sobre o modo como terminar, sucedendo-se três ou quatro cenas que poderiam preceder os créditos.

«Romance» («Romangseu», em hangeul) é outro título comercial que não convence; muito do que vemos no ecrã não parece possível no mundo real, culminando com um final pouco honesto devido a conveniências dramáticas. Esforça-se em ser “romântico” e, mais tarde, investe fortemente na acção. Lembramo-nos dos comentários irritados da personagem de Jeong Jae-yeong, em «Someone Special», sobre certos filmes coreanos que passam do drama intenso para a acção pura sem razão aparente.

«If You Were Me 3» é um conjunto de seis curtas-metragens agregadas sob o tópico dos direitos humanos, abordando temas como a discriminação racial, homossexualidade, condição feminina ou os direitos dos trabalhadores. Do conjunto, só “GaP”, de Lee Mi-yeon, pareceu demasiado “spot de serviço público”. Os restantes apresentaram histórias que se sustinham sem nos atirarem à cara a “mensagem” (que, no entanto, é a razão de ser do projecto).

Desenvolvimentos ficam para uma eventual próxima oportunidade. Breves sinopses:

“Muhammad the Hermit King”, Jeong Yun-chul. Um trabalhador tailandês sente a discriminação na pele. O realizador insere um curioso ingrediente fantástico na narrativa.
“The Girl Disappeared”, Kim Hyeon-pil. Uma estudante de liceu é olhada de lado por ser órfã e viver sozinha, enquanto passa dificuldades económicas.
“GaP”, Lee Mi-yeon. Um casal discute o papel do homem e da mulher no casamento (e na sociedade). “Não queres que eu lave a loiça, não é?!”
“A Rough Life”, No Dong-seok. Numa festa de aniversário, um grupo de crianças reage de forma negativa à visita da amiga negra do aniversariante. Trata um tema sério com algum humor e boa direcção dos miúdos.
“Bomb! Bomb! Bomb!”, Kim Gok e Kim Seon. No liceu, um aluno é maltratado por ser homossexual e praticamente torturado para revelar quem é “o último namorado”.
“What Shall I Do?”, Hong Ki-seon. Um trabalhador que não pertence ao quadro da empresa tenta lutar contra as limitações de direitos do seu estatuto.

Realizadores e parte do elenco de «If You Were Me 3», no final da projecção.

O projecto do JIFF, “Digital Short Films by Three Filmmakers”, este ano sob o “mote” “Talk to Her”, reuniu os talentos dos realizadores Darezhan Omirbayev (Cazaquistão), Eric Khoo (Singapura) e Pen-ek Ratanaruang (Tailândia).

O mais eficaz dos três filmes é «No Day Off», de Khoo, abordando a vida das empregadas (maids) que deixam os seus países para trabalhar em Singapura. Esta migração é um fenómeno recente, resultado do crescimento económico do país. Khoo tomou uma opção curiosa, mostrando apenas a personagem central, com os patrões sempre off-screen. Há um número elevado de casos de violência contra as maids, que, de acordo com o texto do catálogo, serão mais vistas como um electrodoméstico do que como um ser vivo.

No final da projecção — com os três realizadores presentes — uma mulher de Singapura afirmou que o filme não era justo e traçava um retrato demasiado cru da situação. Khoo rebateu bem e a interlocutora pareceu resignar-se. Com base nos exemplos dados e nas estatísticas, o realizador foi convincente, frisando que optou por não pegar nos piores casos de abuso que têm vindo a público.

Uma mulher de Singapura mostra-se descontente com o filme de Eric Khoo, acusando-o de ser demasiado duro. Na sessão estiveram também presentes, além de Khoo (foto ampliável, à direita), os realizadores Pen-ek Ratanaruang e Darezhan Omirbayev.

O filme de Pen-ek Ratanaruang, «Twelve Twenty» (12 horas e 20 minutos) o terceiro do conjunto, é um exercício formal curioso, com base numa história de Gabriel García Márquez, sobre um homem que passa metade de um dia ao lado de uma mulher por quem se apaixona, durante uma viagem entre a Tailândia e a Alemanha, refreando-se de lhe dirigir a palavra. Christopher Doyle é o director de fotografia e interpreta o capitão do avião.

Adaptado de um livro de Anton Chekov, «About Love» é uma história simples sobre o reencontro de dois amigos e o amor do solteiro pela mulher do outro. Desapaixonado e contido como uma peça clássica. É o único dos três filmes que não procurou uma estética própria, nem livrar-se de um certo aspecto home video digital.

17/05/06

(Continua)
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