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Iº Festival de Cinema Asiático de Lisboa

Poster

Numa iniciativa da Embaixada da República da Coreia em Portugal e com a participação das embaixadas da China, Índia, Indonésia e Tailândia, realizou-se durante o fim de semana de 22 a 24 de Outubro, no cinema São Jorge, em Lisboa, a primeira edição do Festival de Cinema Asiático. O evento apresentar-se-ia sem um organizador definido no cartaz ou no programa, onde era apenas visível o logótipo da Fundação Oriente, entidade que apoiou financeiramente o evento, sem nenhuma outra referência, para além da EGEAC, da Câmara Municipal, que gere a sala e a cedeu.

Filmes apresentados:
China: «Chuveiro/Xizao» (como «Tomar Banho»), «A Treinadora e os seus Jogadores/Nu Shuai Nan Bing» e «O Caminho para Casa/Wode Fuqin Muqin» (como «Os Meus Pais»); Coreia do Sul: «Donggam» [«Ditto»] e «Yeobgijeogin Geunyeo» [«My Sassy Girl»]; India: «Gandhi»; Indonésia: «Tjoet Nja' Dhien» e «Langitku Rumakhu»; Tailândia: «Sibha Kham Doan Sib Ed» [«Mekhong Full Moon Party»]


Os filmes apresentados foram seleccionados pelas respectivas embaixadas, compondo-se uma pequena selecção de nove títulos, que permitiria um olhar, ainda que limitado, sobre uma cinematografia virtualmente desconhecida na Europa, como é a Indonésia (de onde veio «Tjoet Nja' Dhien» e «Langitku Rumakhu»), assistir, no grande ecrã, a dois títulos populares da Coreia do Sul («Ditto» e «My Sassy Girl») e a uma reputada obra tailandesa («Mekong Full Moon Party»), que nos faz desejar acesso a mais filmes de um país cuja produção de cinema é muito dinâmica e carece de outra divulgação no Ocidente [1].

Aos restantes quatro títulos dificilmente podemos atribuir a mesma importância. «Gandhi» não é exactamente o que esperaríamos de uma entrada representativa do cinema indiano — mas talvez a "representatividade" não fosse um factor de selecção —, para além de ser um filme que estreou comercialmente, existe em vídeo e foi exibido diversas vezes na TV. Havia uma oportunidade de mostrar um pouco dos aromas do cinema indiano, popular ou de arte e ensaio, mas optou-se por não o fazer. É uma pena. A China optou por fornecer DVDs em vez de película. É uma pena. A oportunidade de desfrutar de um belíssimo filme como «O Caminho para Casa» (1999) no grande ecrã perdeu-se. O mistério dos títulos («Tomar Banho» em vez de «Chuveiro»; «Os Meus Pais» em vez de «O Caminho para Casa») ficou esclarecido: as cópias eram brasileiras. A piorar, existiram alguns problemas de leitura, nomeadamente durante a projecção do filme de Zhang Yimou, que "saltou" uns 15 ou 20 minutos para trás e, por alguma razão que ficou por apurar, teve de ser repetido (seria impossível o fast-forward?). Quem foi apenas a uma sessão de um dos filmes chineses poderá não ter ficado com a melhor das impressões do festival.

Aparte as entradas chinesas, todos os outros filmes, felizmente, foram apresentados em película. Nem todas as cópias estavam nas melhores condições, nomeadamente a de «Tjoet Nja' Dhien» (1988) que, para além de apresentar alguma deterioração no início e final de cada bobina, tinha a legendagem (em francês) incompleta. Talvez um terço do filme tivesse ficado por legendar, o que inevitavelmente prejudicou a sua apreciação (ou até a compreensão). Também existiam momentos em que se legendava o holandês em indonésio apenas. Fica por entender qual a função de uma cópia com estas características.

«Tjoet Nja' Dhien» é o relato da vida de uma mulher que continuou o trabalho do marido como resistente contra as tropas colonialistas holandesas, durante várias décadas, nos finais do Século XIX, mantendo-se fiel ao seu país e ao seu povo, contra todas as adversidades e resistindo a infindáveis traições. Diríamos que o filme deverá ser fiel à História, pois se se quisesse enaltecer o patriotismo do povo não se apresentariam tantos traidores ("compunham-se", para efeitos de dramatização, numa única personagem). A montagem não é perfeita: depois de uma longa sequência que intercala batalhas com diálogos tácticos entre militares, as cenas sucedem-se algo desconjuntamente, com os resistentes a resistirem e os ocupantes a ocuparem. Parece haver uma versão mais longa que talvez flua melhor, mas a demissão das legendas não permite uma apreciação adequada. A direcção de actores e sobretudo de extras deixa muito a desejar. Nas batalhas todos morrem com o mesmo esgar e gritos de dor, o que lhes confere algum artificialismo. Há alguns valores de produção, mas oscila-se entre alguma inépcia técnica e momentos mais satisfatórios, tanto a nível técnico como de interpretações.

My Sassy Girl
Jeon Ji-hyeon em «My Sassy Girl».
«Langitku Rumakhu», ou «Le Ciel Est Mon Toit» na cópia legendada em francês, é uma narrativa contemporânea passada na Jakarta do presente (o filme é de 1990), que aborda a amizade entre um menino pobre e um menino rico. Sem investir em qualquer lição de moral, o filme assenta nos contrastes que opõem a classe alta aos residentes de bairros de lata, propondo outra bipolarização, quando se entra em modo road movie: cidade-campo. A história não é desinteressante e retrata-se com franqueza o largo fosso que separa as classes sociais: os pobres recolhem papel velho para vender para poderem comer, os ricos dão-se ao luxo de comprar revistas estrangeiras caras; os miúdos ricos vão à escola de mercedes, os pobres nem a pé podem ir. Os defeitos mais notórios do filme estão nas representações. A prestação de dois miúdos é essencial e não é fácil que eles sejam convincentes, sendo difícil, desde logo, entender porque é que o rico, rodeado de amigos, decide iniciar uma nova amizade com o pobre, desde o momento em que o vê.

Os dois filmes sul-coreanos constituíram um par de propostas interessantes, ainda que apenas «My Sassy Girl» seja essencial; «Ditto» é um melodrama "with a twist" (desconstruído, num segundo, em qualquer sinopse ou trailer) equilibrado e satisfatório por quem tenha muita tolerância pelo género e não seja alérgico ao pianinho, sempre presente. Ambos os filmes foram já comentados nestas páginas, para onde remetemos o leitor.

Sobra «Mekhong Full Moon Party» (2002), de Jira Maligul, um dos melhores títulos desta curta selecção, cuja narrativa se baseia num fenómeno que ocorre numa aldeia do nordeste tailandês, junto à fronteira com o Laos. Uma vez por ano, no 11º mês do calendário lunar, pequenas bolas de luz alaranjada saem do fundo do rio Mekhong e elevam-se nos ares. Milhares de pessoas, locais e turistas estrangeiros, deslocam-se ao local para apreciar o espectáculo ou para prestar devoção à divindade que se acredita estar no fundo do rio: o dragão Naga. Cientistas e estudiosos tentam explicar o mistério, procurando provas para convicções opostas: uns acreditam que se trata de um fenómeno natural, outros de que há mão humana por detrás de tudo. Há por aqui também uma história de amor, onde não se terá querido investir muito, ao contrário do humor que poderia ter sido reduzido (supomos que funcionará melhor localmente). Competente tecnicamente, com uma bela fotografia, e com actores à altura dos papéis que não são particularmente exigentes. Os créditos agradecem que os espectadores não divulguem o final, mas não sucede por aí exactamente nada de surpreendente.

Mekhong Full Moon Party
Esta foi a primeira edição de um evento que deverá continuar a realizar-se e, apesar da promoção ter sido limitada, lamenta-se que tenha atraído tão poucas pessoas, mesmo para as sessões com filmes recentes e com alguma notoriedade (o mais "popular" seria «My Sassy Girl»). Esperamos que na próxima edição não existam os problemas técnicos que ocorreram desta vez, nomeadamente cópias semi-legendadas e algumas projecções despachadas em DVD. As salas (2 e 3 do São Jorge, 250 lugares cada) também não estão exactamente nas mais perfeitas condições técnicas: o som é, por vezes, estridente e abafado e a selecção de enquadramentos foi coerentemente incorrecta, o que se nota mais num filme com "mattes" de câmara na película, como «My Sassy Girl». Essas faixas negras variam conforme a câmara usada e não serão vistas usando-se a máscara de projecção adequada. Mas como tal não sucedeu, lá iam aparecendo acima e abaixo na imagem (e obviamente a solução não passa por ajustes horizontais durante a exibição, mas pela utilização da janela correcta). O cinema São Jorge vai para obras e esperamos que se melhore algo mais que o ar condicionado.

[1] Apesar de ser relativamente pouco divulgado no Ocidente, principalmente tendo em contas as quase inexistentes estreias comerciais, o cinema tailandês tem marcado presença em vários festivais de cinema europeus, incluindo nos "grandes". Recentemente, «Last Life in the Universe» esteve em Veneza e «Sud Pralad» em Cannes. Por onde passámos, pudemos ver «One Night Husband» (Deauville 2003), «Bangkok Haunted» (Sitges 2002), «Ong Bak» (Sitges 2003), «Beautiful Boxer», «The Bodyguard» e «Buppha Rathree» (Udine 2004).

5/11/2004

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