Gidam [Epitaph]
기담
Realizado por Irmãos Jeong [Jeong Sik & Jeong Beom-sik] 1
Coreia do Sul, 2007 Cor – 107 min.
Com: Kim Tae-wu, Kim Bo-gyeong, Lee Dong-gyu, Jin Gu, Go Ju-yeon, Kim Eung-su, Ye Su-jeong, Yeo Ji, Jeong Ji-an, Choi Jae-hwan; Participações especiais: Jeon Mu-song, Park Ji-a, David Lee McInnics, Eom Ji-won
drama horror crime
Dois posters de «Epitaph».
(Passe com o rato sobre a imagem.)
Em Outubro de 1979, o Hospital Anseong está prestes a ser demolido 2. O Dr. Park Jeong-nam (Jeong) revê um álbum de fotografias resgatado do edifício, e as imagens reavivam-lhe memórias do passado, transportando-o a quatro estranhos dias de Fevereiro de 1942, altura em que era estagiário naquele hospital. Sobrepõem-se três histórias, confluindo para a morgue. A primeira, parte do cadáver de uma jovem que se suicidou (Yeo); a segunda, centra-se numa miúda traumatizada, única sobrevivente de um acidente que vitimou toda a família (Go); e a última, num casal de cirurgiões (Kim Tae-wu e Kim Bo-gyeong).

O cinema de terror coreano tem trazido ocasionais propostas interessantes, mas a esmagadora maioria das produções tende a caracterizar-se pela estandardização e falta de imaginação. Tratam-se sobretudo de filmes comerciais, destinados a consumo rápido no Verão, frequentemente entregues por um estúdio a um realizador inexperiente. Ainda hoje é comum referirem-se «Memento Mori» (1999) e «A Tale of Two Sisters» (2003) como os melhores filmes de terror produzidos na Coreia do Sul nos últimos anos, dada a falta de títulos fortes.

Em 2007, voltaram a estrear um bom punhado de filmes de terror em Seul, como «Muoi», «The Cut», «Black House» ou este «Epitaph». Os dois últimos passaram, em Outubro, pelos festivais espanhóis de género: «Black House» esteve em Sitges e «Epitaph» na Semana de Cinema Fantástico e de Terror de San Sebastian. Como não fui a San Sebastian, «Epitaph» seria visionado no DVD coreano, editado no final de Novembro.

A Dr. Kim/Kaneda (Kim Bo-gyeong) observa o cadáver de um soldado japonês.
«Black House» foi uma das maiores perdas de tempo em Sitges (e de sono, dado que se tratou de uma sessão matinal), mas «Epitaph» está num nível muito acima, ainda que não deixe de ter alguns defeitos que impedem que se aproxime das duas obras máximas do horror coreano acima referidas. Os Irmãos Jeong 3 não parecem ter problemas em assumir a influência de um desses filmes – «História de duas Irmãs/Janghwa, Hongnyeon», de Kim Ji-un. Tal é notório no modo como psicoses confundem pontos de vista e identidades e na figura de Asako, a miúda perturbada e corroída pela culpa que é visitada pelo fantasma da mãe. .

«Epitaph» poderia desmoronar-se, tendo em conta o ponto de partida de uma estrutura narrativa pós-moderna, que começa no “presente”, 1979, vai até um dia de 1942 e depois apresenta três histórias – interligadas e sobre o mesmo cenário do Hospital Anseong – em ordem cronológica invertida. Quando a primeira termina, uma legenda anuncia: “Um dia antes”. No entanto, esta opção narrativa não é um mero armar aos cucos por parte dos realizadores, na medida em que a inversão da cronologia natural não pretende explicar ou rever elementos já apresentados; assinala o início de narrativas que são, afinal, paralelas (as que se apresentam posteriormente começam mais cedo).

Algumas opções de montagem podem parecer estranhas ou, no mínimo, irregulares. As personagens centrais à segunda e terceira história são como que removidas da imagem antes de chegar a altura de entrarem em cena. Outras personagens dirigem-se-lhes ou referem-se-lhes mas permanecem fora do quadro (normalmente na posição da câmara, i.e. a nossa). Quando avançamos na narrativa, esses momentos são contextualizados com a presença dos que antes estavam escondidos.

Sem deixar de utilizar alguma iconografia do cinema asiático moderno de horror que poderá ser consideradacliché,
«Epitaph» segue um caminho que não se deixa prender pela previsibilidade.

Há pelo menos um caso em que a inserção de um breve plano surge como que uma interferência no fluir da história que no momento se desenrolava – quando vemos os alunos no anfiteatro de uma sala de aula a perguntarem ao professor se acredita em fantasmas. Não há ligação lógica ao que vemos antes nem ao que se segue e a cena é demasiado breve. Caso diferente é quando o Dr. Lee (Lee Dong-gyu) e os estagiários olham para Asako (que só se revelará fisicamente mais à frente). Não ficamos com a sensação de ser uma inserção aleatória, pois ao plano é dado tempo para respirar e a acção é contextualizada: vemos um médico a descrever uma situação clínica aos alunos, é-nos apenas ocultado o sujeito da observação.

A divisão em três capítulos, se assim se pode dizer, quase sugere estarmos perante um filme por segmentos, mas mantém-se a unicidade narrativa centrada na personagem de Jeong-nam (interpretado por Jin Gu, quando jovem), que abre e encerra o filme em 1979 e está presente na acção situada 37 anos atrás, ainda que seja a personagem central de apenas uma das histórias. Os fantasmas marcam presença, sendo a característica mais saliente do filme – se o quisermos categorizar num sub-género do terror – , mas existe também uma vertente de assassínio em série, a desenvolver no segmento final.

Jeong-nam (Jin Gu) é um médico estagiário
que se afeiçoa por uma jovem recentemente falecida.
Ainda que a acção decorra em épocas importantes da história recente da Coreia, as características dos períodos não são essenciais em termos narrativos, sendo inclusive tratadas com casualidade. A acção principia em Outubro de 1979, no mesmo mês em que o ditador Park Chung-hee [Park Jeong-hui] foi assassinado, e é reencaminhada para uma altura em que o país estava sob o domínio do Japão. Apesar de uma das linhas narrativas envolver um assassino em série que, aparentemente, tem como alvo apenas soldados japoneses, não existe intenção expressa de vincar noções de patriotismo nem personagem alguma insinua, sequer, desejo de resistência face à potência ocupadora. Mais do que isso, Akiyama (Kim Eung-su), o oficial japonês que investiga os homicídios, é a face da Lei e uma figura do Bem.

Apesar da “casualidade” narrativa, não podemos pretender a inocência dos realizadores (e argumentistas) ao situarem um filme de horror em duas épocas da História recente da Coreia em que as liberdades da população estiveram cerceadas – primeiro, pela ocupação de uma potência estrangeira que procurou a aculturação da população ocupada, patente, por exemplo, na obrigação da utilização de nomes japoneses por parte dos cidadãos coreanos; depois, pelo regime ditatorial de Park, que continuaria com Chun Du-hwan até 1988.

Esses elementos históricos poderão não ser registados pela generalidade das audiências estrangeiras, mas a falta de “comentário” político directo e o investimento formal no género não prejudicará a apreciação ou compreensão do filme. Não estamos no mesmo âmbito de filmes como «El Laberinto del Fauno» de Guillermo del Toro, onde um regime político está a ser retratado directa e figurativamente.

Há quem refira influências de «Oldboy» – a sinopse de San Sebastian, por exemplo –, o que faria todo o sentido, visto que Jeong Sik trabalhou como assistente de direcção de Park Chan-uk, mas confesso a minha incapacidade em encontrar essas referências, em termos de texto ou mesmo no que toca à estética. Os traços de «A Tale of Two Sisters», por outro lado, sentem-se e encontram-se nos corredores do Hospital de Anseong.

Na sua primeira longa-metragem, os Irmãos Jeong demonstraram segurança e domínio da linguagem de género, evitando enveredar por caminhos previsíveis. O filme constrói-se com um ritmo pausado e há um grande investimento nas ambiências sonoras, ainda que a música – de Park Yeong-nam – tenha algumas variações muito contrastantes (como se juntasse o score de filmes diferentes) e se exagere numa ocasião numa cue intensa que lembrará Herrmann em «Psycho».

A componente visual, sobretudo a nível da composição, é também marcante, com algumas imagens muito belas, incluindo a ilustração de sonhos e visões. Poderá surpreender que, tal como os realizadores, também o compositor e o director de fotografia, Yun Nam-ju, não tenham créditos anteriores em longas-metragens. Juntam-se dois ou três momentos realmente arrepiantes e eis que temos um filme de terror que não se pode deixar de recomendar aos fãs do género.

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1A romanização alternativa do apelido é Jung. O som transcrito com 'u' ou 'eo' está próximo do 'u' inglês de “duck” ou do 'â' português. Ou do 'ó'... Depende de quem pronunciar. Bom, o registo serve para frisar que o som não é um 'u' português (tal como não é 'u' o som de “duk” em Kim Ki-duk/deok.)

2 Anseng – 安生 em chinês (ansheng em pinyin) ou 안성 em hangeul – significa “vida pacífica” ou “vida em paz”.

3 É nessa forma (정가형제) que Jeong Sik e Jeong Beom-sik são creditados na película.

A primeira edição (limitada) em DVD na Coreia do Sul (SM Pictures, R3) é constituida por uma caixa de cartão exclusiva, envolvendo um digipak desdobrável em quatro. O interior contém dois discos, oito fotos promocionais (18.5 x 13.2 cm) e um poster (35 x 52 cm).

O filme é apresentado em transcrição anamórfica (1.85:1), com pistas de áudio Dolby 5.1 e dts, além de um comentário áudio.

O segundo disco inclui cenas apagadas, entrevistas e extenso material de making-of. Apenas o filme está legendado em inglês.


publicado online em 4/1/07

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