Um liceu feminino, na Coreia do Sul. Min-ah (Kim) encontra um diário partilhado por Shi-eun (Lee) e Hyo-shin (Park), duas colegas suas, e, à medida que vai passando as páginas, repletas de fotos, recortes e texto de variadas cores, fica cada vez mais interessada na relação entre as duas raparigas. Hyo-shin regressa à escola, depois de uma ausência prolongada, e procura reaproximar-se de Shi-eun. Ao princípio tudo parece correr bem, mas Shi-eun revela sentir-se incomodada com a ideia de assumir publicamente a relação.
Como facilmente se poderá depreender pelo seu título original e por alguns dos títulos ingleses alternativos, «Memento Mori» é, formalmente, uma sequela do filme de horror «Whispering Corridors» (1998). Este título internacional parece ter sido gerado aquando do envio de cópias para festivais internacionais de cinema, tendo-se usado primeiramente um outro, que assumia directamente a sua qualidade de sequela. No entanto, não há qualquer relação entre as duas histórias, para além das premissas vagamente similares: ambos os filmes decorrem em colégios femininos e lidam com elementos fantásticos, como colegiais cuja morte não impede o reingresso na escola, para se vingarem de colegas ou, quem sabe, do próprio sistema educativo.
As diferenças entre os dois filmes são óbvias e puderam ser confrontadas por quem esteve presente na edição do Fantasporto de 2001, quando o festival apresentou uma muito bem vinda retrospectiva dedicada ao cinema coreano contemporâneo. «Whispering Corridors» acaba por ser um filme de horror convencional, onde o fantasma vingativo vai eliminando as suas vítimas, uma a uma, por métodos mais ou menos violentos. Estruturalmente, não é muito diferente do que estamos mais habituados a ver no cinema de Hollywood, com a benesse de termos uma atmosfera de horror mais eficaz, dando-se importância à sugestão e não propriamente à violência gráfica (algo praticamente ausente desta obra).
|
|
Hyo-shin reencontra Shi-eun.
|
«Memento Mori» é um objecto completamente diferente de «Whispering Corridors», fazendo sentido que seja conhecido por um título que o demarque e não pela "parte 2" que não é, de facto. Aqui, o elemento horror acaba por ser secundário a uma história de amor entre duas estudantes, cuja separação é forçada por pressões do meio escolar e estudantil, contra uma relação homossexual, muito mal encarada pela sociedade coreana. O motor essencial da narrativa é ilustrado pela sequência pré-créditos, onde vemos as duas jovens, debaixo de água, ligadas por um lenço vermelho: Shi-eun solta-se e empurra Hyo-shin para o fundo. Esta sequência, no fundo (trocadilho possivelmente não intencional), resume e ilustra o essencial do filme e poderia ser usada como referência essencial por todos os que insistem em esquemas interpretativos desnecessariamente complexos, que, como quando perante alguns filmes de David Lynch, têm tendência a "resolver" tudo o que não se parece encaixar no plano lógico, com o sonho ou a visão de alguma personagem. Não se pode excluir esses mecanismos, nem em Lynch, nem aqui, mas querer meter tudo dentro de um sonho é uma forma extremamente aborrecida de "interpretar" um filme (ou "fechá-lo", para não pensar mais nas suas complexidades).
|
Adolescentes "diferentes", com problemas de inserção no ambiente escolar ou social, não constituem propriamente um tema raro no cinema. Em «Memento Mori», essa diferença centra-se na relação lésbica, mas não se confina a isso. O estigma voltou-se contra o próprio filme, sendo os cineastas obrigados a cortar algum material mais “explícito” (não necessariamente sexual), tornando o filme menos “ofensivo”. De entre estas cenas – que, aparentemente, foram destruídas – sobrou um curto plano no trailer, onde se podem ver as duas raparigas juntas, muito felizes da vida, na banheira (sem indicações que se passe algo mais do que um higiénico banho, com algum chapinhar inocente). Um dos realizadores, quando questionado sobre este assunto, terá demonstrado uma certa irritação quanto a tal interferência censória. De qualquer forma, a temática continua presente, apesar de contactos físicos mais próximos terem sido eliminados. O filme é também crítico de um sistema educativo repressivo e conservador, que estimula a competitividade a qualquer preço e não se importa de pôr à margem aqueles que não seguem normas de conduta, linha a linha. A sequência dos exames físicos vem ilustrar esta questão, camuflada pelos tons humorísticos decorrentes da frustração de Moon Ji-won perante as suas “insatisfatórias” medidas, por debaixo da t-shirt Castrol GTX, ou da outra rapariga que se recusa a aceitar a sua baixa estatura e se humilha, suplicando novo exame.
Se «Memento Mori» é, formalmente, um filme de horror, os elementos caracterizadores desse género não estão presentes: não há "cenas de morte" propriamente ditas, nem vultos cobertos por sombras a perseguirem pessoas em corredores escuros (o mote de «Whispering Corridors»), não há um perigo definido que leve as personagens centrais a pôr um plano em prática, para vencer esse inimigo; torna-se difícil, inclusive, separar os intervenientes em "bons" e "maus". Há uma atmosfera de suspense e inquietude muito bem construída, colocando os nervos do espectador à flor da pele, num crescendo até ao final, apesar de não entrarmos no território do medo ao nível de «Ring», por exemplo. A narrativa entrecortada, o modo cuidado com que se filma, a utilização do som e da música (a banda sonora recomenda-se), confere ao filme uma aura meio surreal, que contribui para nos fazer partilhar as sensações vividas por Min-ah, que possui apenas fragmentos de informação, que vai juntanto, colocando-nos assim também numa posição voyeurista, de quem quer sempre ver um pouco mais.
|
«Memento Mori» desenvolve-se a partir de uma estrutura não linear, começando no tempo presente, com constantes inserções de flashbacks, sem qualquer aviso, além do recurso a sonhos ou simbologia em forma de visões (como a cena inicial, já citada). Somos apresentados às personagens, colocados perante acontecimentos trágicos e depois vamos lentamente entendendo as razões do sucedido, com viagens ao passado antigo e ao passado mais recente, à medida que Min-ah vai folheando o diário. Já se referiu Lynch e esta estrutura poderá fazer recordar as suas obras mais recentes, apesar de nunca entrarmos no plano mais visceral, nem nos temas, do realizador, nem as suas personagens se poderem identificar com as colegiais de «Memento Mori». A similaridade prende-se sobretudo com a estrutura narrativa onde os filmes assentam e o desejo de permitir ao espectador que cole todos os pedaços apresentados de modo desconexo. Aliás, tal como «Mulholland Dr.» (2001) – com uma história igualmente assente na resolução de uma relação lésbica e respectivas consequências –, «Memento Mori», de algum modo, sugere-me proceder a uma bem definida “arrumação” cronológica da sua linha de acontecimentos, isolando tempo passado, futuro, possíveis símbolos e visões. Os pontos de contacto com Lynch não ficam por aqui; veja-se o plano inicial, pouco depois do prólogo, quando a câmara “entra” dentro do ouvido de Shi-eun. Não será, no entanto, o suficiente para dizermos que o filme de Kim Tae-yong e Min Kyu-dong está entre «Blue Velvet» e «Mulholland Dr.». Para além da perspectiva cronológica, claro.
|