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A Coreia Fantástica no Porto e a Crise de Bucheon

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No passado dia 5 de Março, a convite da Embaixada da Coreia do Sul em Portugal, encontrámo-nos com cineastas sul-coreanos que se deslocaram ao nosso país para participar no Fantasporto. No último dia do Festival Internacional de Cinema do Porto, Park Heung-sik («My Mother, the Mermaid») e Min Byeong-cheon («Natural City»), já haviam regressado a casa e, infelizmente, não puderam estar presentes. O encontro realizou-se durante um almoço, num restaurante chinês a uns minutos do Teatro Rivoli, onde nessa noite a gala de encerramento teria lugar. E, por ironia do destino, os dois cineastas premiados foram os que já não estavam em Portugal.

A conversa envolveu Creta Kim e Ellen Kim (ex-programadoras do PiFan), Yang Yun-ho (realizador de «Fighter in the Wind») e Zeong Cho-sin (director de programação do PiFan e realizador).


I – PiFan

A Queda de Bucheon

A ausência dos realizadores Park e Min teve uma primeira consequência, que foi o domínio do tópico PiFan durante a conversa. O Festival Internacional de Cinema Fantástico de Bucheon (1) atravessa uma crise séria, aberta poucos meses depois da eleição do novo mayor, Hong Geon-pyo, que decidiu substituir a equipa de programadores. A situação pode parecer estranha, mas há que explicar os contornos formais. Por cá é normal vermos os nomes de Presidentes da Câmara, membros do Governo e até do Presidente da República, associados a manifestações culturais. Mas a sua presença — pegue-se no exemplo do Fantasporto — é a título meramente honorífico. O que se espera do poder político é que potencie ou assegure que existem condições para que a cultura seja acessível aos cidadãos, cedendo infraestruturais ou contribuindo financeiramente, não que interfira em projectos em curso, pondo a sua continuidade em causa, sem que se vislumbre racionalidade subjacente a tal acto.

Ellen Kim
Ellen Kim fez parte do júri Orient Express do Fantasporto.
Por inerência do cargo, o senhor Hong tornou-se Presidente do Comité Organizativo do PiFan e usou o seu poder e, sobretudo, a sua influência, para afastar Kim Hong-jun (2), presidente do festival desde 2001, no final de Dezembro de 2004 — uma atitude que, para muitos, é de claro abuso do poder político sobre o funcionamento de um organismo cultural (que devia ser) independente. Pouco tempo depois, as três programadoras, que têm recebido os mais rasgados encómios pelo trabalho desenvolvido, Ellen Kim Yeong-deok, Creta Kim Do-hye e Michelle Son So-yeong, foram igualmente afastadas.

Ainda a decisão do Mayor não estava anunciada e já havia protestos ruidosos por parte de algumas das mais importantes figuras do cinema da Coreia do Sul, incluindo os realizadores Park Chan-uk, Bong Jun-ho e Kim Ji-wun e o actor Choi Min-sik, que decretaram o boicote puro e simples a uma próxima edição do festival não organizada pela mesma equipa. Esta forte pressão levou a que o substituto de Kim Hong-jun, Jung Hong-taek, se afastasse voluntariamente. O cargo ficou por ocupar desde então e a responsabilidade de tentar pôr o festival de pé caiu nas mãos do novo director de programação, Zeong Cho-sin — realizador de «Jakarta» e dos hits de bilheteira «Wet Dreams» (3).

Qual a razão pela qual o Mayor Hong quis afastar Kim? Oficialmente, foi a “preocupação” com a impossibilidade do director do festival conciliar essa actividade com a sua recente nomeação para Presidente da Faculdade de Cinema, TV e Multimédia da Korea National University of Arts. Ellen Kim deu mais pormenores sobre a decisão, explicando que o Mayor considerou que Kim o ofendeu, bem como toda a população de Bucheon, ao esquecer-se do seu nome durante a cerimónia de abertura do PiFan de 2004, hesitando durante alguns segundos. Quantos segundos, ao certo, não foi possível apurar, ficando também por determinar qual a pausa mínima aceitável pelo Mayor, a partir da qual a hesitação passou a configurar um insulto passível de gerar uma insanável quebra de confiança entre os dois.

Há muitos casos de pessoas que acumulam funções”, disse Ellen Kim. “O município contribui com 25% do orçamento do festival. O Mayor, cuja ligação ao festival é automática, abusou dos seus poderes para forçar uma posição no comité organizativo e vencer a votação que levou ao afastamento da equipa de programadores”. “Enquanto evento cultural, o PiFan devia ser independente do poder político”, reforçou Creta Kim. “Têm-se levantado vozes de protesto de todo o mundo, mas o Mayor tem-se recusado a ouvi-las”.

Creta Kim
Creta Kim integrou o júri internacional do Fantasporto.
Que razões poderia ter Hong para querer remover uma equipa vencedora senão para poder fazer ajustes editoriais, avocando um direito que dificilmente lhe competia? O festival é conhecido pela programação arrojada, com uma certa vertente de provocação. Na Coreia do Sul existem ainda muitos tabus e um regime de censura (nada estranho à Europa, veja-se o ridículo trabalho do BBFC no Reino Unido, apesar da gradual “abertura”). O PiFan programava regularmente filmes que não poderiam ser exibidos comercialmente sem cortes da censura. Na edição de 2004, efectuou-se uma retrospectiva ao cinema da produtora independente americana Troma e outra sugestivamente apelidada “Corpse Fucking Art: The Films of Jorg Buttgereit”. Não nos custa imaginar a apreciação de tais obras pelo poder político conservador.

A actual situação do festival dificilmente podia ser pior. O novo director de programação, Zeong Cho-sin (4), mostrou-se preocupado, mas revelou não ter tido ainda tempo de medir a extensão do trabalho que tem pela frente. Se havia alguma tensão entre Ellen Kim, Creta Kim e Zeong a mesma não se revelou muito claramente, pelo menos até Ellen falar de um novo festival de cinema fantástico que a equipa demitida se propunha fazer em Seoul, levando consigo “o espírito do PiFan”.

Quando perguntei a Zeong o que pensava do facto das meninas Kim (5) estarem determinadas a levar o “espírito” do festival alguns quilómetros para sudoeste, para a capital, a sua resposta foi de grande cordialidade para com as suas concorrentes, que — poder-se-ia pensar — poderiam não se sentir inteiramente confortáveis partilhando a mesa com ele. “Não há problema”, respondeu sem hesitar, “o Espírito de Bucheon não me pertence.” Zeong acrescentou que considera falar com os vários realizadores para avaliar da possibilidade de permitirem a exibição dos seus filmes. Mal tal afere-se virtualmente impossível, pois, conforme Creta Kim referiu, a Associação de Produtores da Coreia do Sul declarou o boicote ao festival. Na prática, isso implica que nenhum filme coreano poderá ser apresentado no PiFan.

Admito que o que o Mayor fez não foi correcto”, disse ainda o actual director de programação do festival. “É uma situação muito complexa e eu não tenho direito algum de tentar impedi-las de levar avante outro evento similar. Ainda não tive oportunidade de analisar convenientemente a situação, mas, caso não seja possível desbloquear o impasse, tenho de falar com o Mayor e dizer-lhe que a resolução do problema está somente nas mãos dele.

O Festival de Gastronomia

Jeong Cho-sin
Zeong Cho-sin, director de programação de um festival em crise.
Ainda antes de ter tido a oportunidade de falar com as ex-programadoras do PiFan já me tinha chegado aos ouvidos uma curiosa novidade: o festival iria agora ser de gastronomia. Se fizermos uma pesquisa online encontraremos referências à situação do PiFan em várias línguas. Há também um grande número de cartas de protesto por parte de pessoas das mais variadas proveniências, e nesses textos reclama-se também contra aquilo que o Mayor pretende fazer com o PiFan — que varia, mas que não chega ao colorido de um festival de gastronomia. Trata-se, efectivamente, de algo que não deve ser tomado literalmente, uma metáfora, mas que demonstra que o improvável não é muito difícil de aceitar. Em última análise, estamos perante uma brilhante — deliciosa, diria — manobra de desinformação.

No momento em que escrevo estas linhas é difícil de dizer se a 9ª Edição do PiFan se vai realizar, mas parece ser certo que se o Mayor Hong Geon-pyo não ganha um pouco de bom senso o evento desaparecerá do mapa, pelo menos por ora. Não será irrealista esperar que os políticos possam vir a abrir os olhos e a entender que não podem impor a sua vontade, por um qualquer capricho ou por não simpatizarem com determinadas pessoas, sabotando um festival com a reputação nacional e internacional do PiFan, construída, ao longo dos anos, com base no trabalho de um grupo de especialistas de competências reconhecidas em vários continentes. E substituir o Mayor — será possível?


II – Fighter in the Wind

Fantástico vs. Mainstream

Bucheon dominou o encontro, mas houve também tempo para falar sobre cinema fantástico e de artes marciais. Afinal estava presente Yang Yun-ho, realizador de «Baram-ui Paiteo» [«Fighter in the Wind»].

Yang afirmou não estar certo que o seu filme fosse "adequado" a um festival de cinema fantástico, ao que contrapus que actualmente o certame engloba um núcleo de filmes assim rotulados pela sua temática e arrumados na principal secção competitiva, mas que tem espaço para virtualmente todo o género de filmes. Aliás, não foi a primeira vez que se apresentaram mais títulos na secção generalista Premiere & Panorama que na Secção Oficial Cinema Fantástico.

Infelizmente não pude visionar «Fighter in the Wind», o que reduziu as possibilidades ao colocar questões ao realizador, que tiveram de ser tendencialmente genéricas ou com base no que se tem dito sobre a obra, algo que tem boas possibilidades de correr menos bem, como pude comprovar ao inquirir sobre uma eventual inspiração nas estruturas do cinema de artes marciais made in Hong Kong, que poderá ter soado como um cliché por parte de alguém distante e com poucas referências sobre as cinematografias em causa. Yang negou a influência directa no seu filme e Creta Kim frisou que a estrutura que motivou a pergunta — jovem inexperiente assiste ao homicídio da família/mulher/mestre, retira-se para treinar, aprende técnicas inovadoras, regressa mais tarde e tritura os inimigos — não é apenas típica das artes marciais de Hong Kong, mas um formulário universal. Pouco depois, foi-me sugerido que visitasse o Festival de Cinema de Pyongyang.

Nos anos 60, houve um período áureo do cinema de acção de Hong Kong, mas as influências não circularam apenas num sentido, como se poderá aferir pelo número de filmes co-produzidos entre a Shaw Brothers e estúdios sul-coreanos. Ellen Kim referiu que nos últimos anos a presença de filmes da Shaw Brothers tem sido regular nos festivais de cinema sul-coreanos, tendo Busan apresentado uma selecção com as referidas co-produções Coreia/Hong Kong, onde esteve presente Sammo Hung Kam-bo.

Yang Yun-ho
O realizador de «Fighter in the Wind», Yang Yun-ho.
Quando nos anos 90 se voltaram a produzir filmes de acção na Coreia do Sul não foi sob influência do cinema de Hong Kong”, disse Yang. “É natural que, numa fase inicial, se registem semelhanças no cinema de acção, de gangsters, etc., com o que se faz em Hong Kong ou Hollywood. Mas para o cinema coreano isto é muito novo; podem-se aproveitar técnicas, mas não se trata de imitação ou inspiração directa. Há uma influência mais expressiva do cinema de Hong Kong nas comédias feitas na Coreia.

Nacionalismo ou identidade cultural

«Fighter in the Wind» é baseado em factos reais e numa banda desenhada muito popular sobre a vida e feitos de Choi Bae-dal, um coreano que se mudou para o Japão no final da Segunda Guerra Mundial para tentar ser piloto de caças, mas que atingiria a fama como lutador de karate, sob o nome japonês Masutatsu Oyama.

Tendo em conta os filmes mais bem sucedidos nas bilheteiras sul-coreanas (6), parecia pertinente perguntar ao realizador se tinha previsto que «Fighter in the Wind» fosse um sucesso por abordar uma temática relacionada com a identidade cultural coreana. Yang não só negou, como revelou ter tido receio de que o filme viesse a ser uma aposta perdida, tendo em conta que outra obra de temática similar, «Rikidozan», produzido com um grande orçamento, obteve resultados muito fracos nas bilheteiras.

Mas a identidade de Choi, enquanto coreano que venceu no Japão, foi um factor de importância vital para o realizador ao desenvolver o filme. “No Japão, as pessoas conhecem-no como japonês. Quis tornar muito claro que Choi era um coreano.” A importância deste desejo deve ser entendida à luz da história coreana do Século XX, com o território anexado pelo Japão até 1945.

Estabeleceu-se um paralelo com outro nome coreano que precisou de ser resgatado à fonética nipónica: Son Gi-jeong. Son venceu a maratona nos Jogos Olímpicos de Berlim em 1936 e a medalha de bronze foi igualmente para um coreano — Nam Seong-ryong (7). Como a Coreia estava ocupada, Son e Nam foram forçados a correr sob a bandeira japonesa e a ouvir o hino japonês no pódio; os nomes romanizados foram igualmente registados em japonês: Kitei Son e Shoryu Nam.

Reflecti muito numa questão filosófica, sobre a abordagem do filme: se deveria ser marcadamente anti-japonesa”, prosseguiu Yang. “Choi Bae-dal não foi exactamente um resistente ao imperialismo nipónico. Acabei por enveredar por um registo que não é anti conflito mas ultrapassando o conflito.(8)

Apesar das preocupações com a história, «Fighter in the Wind» foi produzido para encher salas de cinema. “Os comic books são muito famosos na Coreia do Sul, por isso houve uma preocupação em usá-los como ponto de partida”, explicou o realizador. “Tendo essa fonte como referência, fiz pesquisa histórica ao longo de dois anos, para que o filme fosse relativamente fiel à biografia de Choi Bae-dal — um indivíduo que viveu uma vida única. Os factos base são fiéis à realidade. A partir daí, ficcionou-se uma narrativa que conseguisse comunicar com a audiência.

Outra preocupação de Yang Yun-ho foi filmar os combates de artes marciais com respeito pelas técnicas verdadeiras empregues na época, o que implicou a recusa em utilizar fios para optimizar a performance dos actores.

Blockbuster vs. filme de autor

Em 2004, durante o festival de Udine, manifestou-se, por mais do que uma vez, uma preocupação com o crescimento dos orçamentos dos filmes coreanos. A vontade de fazer filmes cada vez “maiores”, mais caros, com maiores possibilidades de rivalizarem com os blockbusters de Hollywood, parece ser uma realidade e tal poderá significar um golpe na diversidade do cinema sul-coreano, uma vez que um filme grande poderia absorver o financiamento disponível para uma dezena de filmes de baixo orçamento. Para Kang Je-gyu, realizador de «Swiri» e «Taegeukgi», esta relação parecia ser clara, levando-o inclusive a lamentar-se pelo facto de filmes como os seus poderem levar a que outros mais pequenos não vissem a luz do dia.

Yang Yun-ho e Zeong Cho-sin não reconhecem o perigo da asfixia dos filmes pequenos pelos blockbusters. Para Zeong — que associa o blockbuster coreano aos nomes de Kang Je-gyu e Kang Wu-seok («Silmido»), em contraposição com o cinema de autor de baixo orçamento de um Kim Ki-duk — “os dois tipos de cinema podem coexistir pacificamente. A situação é a mesma em toda a parte. Falei durante o festival com um realizador americano que disse o mesmo sobre o modo como as coisas funcionam nos EUA.

O actual director de programação do PiFan referiu supor que seria também assim em Portugal, mas cumpriu-me esclarecer que o termo “blockbuster” dificilmente se aplicaria por cá e que o filme português mais bem sucedido entre nós no ano passado conseguiu ultrapassar a fabulosa barreira dos 40 mil espectadores. Perante esse valor, Zeong fez uma expressão que parecia indagar se eu não estaria a usar um sistema numérico irregular. A reacção é natural, tendo em conta que na Coreia do Sul alguns filmes nacionais no topo das bilheteiras já ultrapassam a barreira dos 10 milhões de espectadores, i.e., mais do que a população de Portugal. A desproporção é desconcertante: num país há filmes nacionais que são vistos por mais de 20% da população, no outro esse valor fica-se por cerca de 0,4%.


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Coreia, Fantasporto
Cinedie Ásia agradece a disponibilidade e simpatia de todos os presentes neste encontro: Ellen Kim 김영덕, Creta Kim 김도혜, Yang Yun-ho 양윤호 e Zeong Cho-sin 정초신; a Hanna Lee 이한나, pela tradução; ao Cônsul Sá Pereira, pela hospitalidade. Agradecimento especial ao Professor Kang Byung-goo 강병구.

Este trabalho não poderia ter sido efectuado sem o inestimável apoio da Embaixada da Coreia do Sul.

(1) PiFan é a contracção de Puchon International Fantastic Film Festival. As novas regras de romanização do coreano levaram a que o registo oficial do nome da cidade passasse a registar-se Bucheon [bu-tjân 부천].

(2) Kim Hong-jun esteve no Fantasporto em 1999, como membro do júri da Secção FantAsia.

(3) No top de bilheteiras de 2005, considerando apenas filmes coreanos, a sequela «Wet Dreams 2» era o quarto filme mais lucrativo, a caminho de 1 milhão e 200 mil espectadores.

(4) O apelido romaniza-se alternativamente como Jeong ou Jung. Jeong é o sugerido pelas novas regras de romanização.

(5) Sem relação de parentesco; Kim é um apelido muito vulgar.

(6) Veja-se «J.S.A.», «Swiri», «2009 – Lost Memories», «Taegeukgi», por exemplo, todos sustentados em elementos da história recente, a identidade cultural e as tensões com a Coreia do Norte e o Japão.

(7) Para mais sobre Son Ki-jeong consulte o site oficial do Movimento Olímpico.

(8) “Not anti but overcoming the conflit”, na tradução para inglês, soa melhor.

21/03/05
cinedie asia © copyright Luis Canau.