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LIFFE AND ASIANS
Cinema asiático na 17ª edição do Ljubljana International Film Festival
17. Ljubljanski Mednarodni Filmski Festival

por Blaž Križnik

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Poster

Todos os anos durante duas semanas em Novembro, a capital da Eslovénia, Ljubljana, torna-se palco do Ljubljana International Film Festival (LIFFe). Este ano o festival realizou-se pela 17ª vez entre 10 e 24 de Novembro. De acordo com a categorização da FIAPF, o LIFFe é considerado um festival internacional “aceitável de categoria B”. Os espectadores eslovenos gostam de comparar o LIFFe com outros festivais internacionais de cinema, ainda que comparações directas possam ser um pouco exageradas. Apesar de ser muito mais pequeno em tamanho e importância, o perfil do programa do LIFFe é similar ao do Busan International Film Festival (PIFF), na Coreia, ou à Viennale, na Europa. Em todo o caso, no festival de Busan apresentaram-se 250 filmes este ano e venderam-se cerca de 170 mil bilhetes, enquanto em Ljubljana, com uma população mais de trinta vezes inferior, o número de bilhetes vendidos foi apenas três vezes menor.

Tendo em consideração a pequena população de Ljubljana e o muito pequeno mercado doméstico de dois milhões de pessoas, 113 filmes projectados e mais de 50 mil bilhetes vendidos não é um mau resultado para o LIFFe deste ano. O número de visitantes é provavelmente muito inferior, uma vez que não é invulgar que o frequentador médio do LIFFe veja quatro, seis ou mais filmes durante o festival.

As projecções realizaram-se em cinco salas de cinema situadas no centro histórico de Ljubljana, o que constitui uma agradável diferença por comparação com as exibições comerciais, que decorrem normalmente em grandes multiplexes na periferia da cidade.

Ljubljana Ljubljana
Ljubljana tem sido a capital da Eslovénia desde há séculos. A cidade situa-se no cruzamento entre os Alpes e o Mediterrâneo


Cinco prémios em quatro secções foram atribuídos este ano. Apesar da cerimónia de encerramento ter sido um pouco desastrada, foi uma surpresa ouvir saudações de boas vindas em coreano, o que se deve provavelmente ao facto de um dos membros do júri internacional ter sido um dos directores de programação do PIFF e ex-produtor de cinema, o coreano Jay Jeon [clique para entrevista]. O júri internacional, que incluiu Ana Maria Percavassi e Marjan Strojan ao lado de Jay Jeon, atribuiu o prémio principal, o Kingfisher Award, à realizadora dinamarquesa Annette K. Olsen, pelo seu filme «1:1 One to One» («1:1 En til En», 2005), que lidava com conflitos entre emigrantes e a maioria da população na Dinamarca, frequentemente reduzidos a diferenças culturais. Uma menção especial foi para o alemão Matthias Luthard por «Pingpong» («Pingpong», 2006).

Ljubljana
O centro cultural Cankarjev Dom Foi o edifício principal do festival. (O edifício de escritórios por detrás aloja as embaixadas de Portugal, da Coreia e do Japão.)
O Golden Reel Award, para o melhor filme escolhido pelo público, foi atribuído a Neil Jordan por «Breakfast on Pluto» («Breakfast on Pluto», 2005), um filme sobre um travesti irlandês na Inglaterra, enquanto o prémio FIPRESCI da associação internacional de críticos de cinema foi para «White Palms» («Fehér Tenyér», 2006) do húngaro Szabolcs Hajdu. Um prémio especial da Amnesty International Slovenia para o filme mais convincente a lidar com assuntos relativos a direitos humanos é também entregue no LIFFe. Este ano foi para «Offside» («Offside», 2006), de Jafar Panahi, pelo seu retrato optimista mas crítico de jovens raparigas iranianas, fãs de futebol mas proibidas de assistir aos jogos.

Tradicionalmente existem sempre bons filmes asiáticos no LIFFe nas diferentes secções do festival. Aqui focamos especificamente “Cinema do Nordeste Asiático”, que inclui os filmes seleccionados pelo festival com origem na China, Hong Kong, Japão, Coreia do Sul e Taiwan. Por uma questão de simplicidade chamaremos “asiáticos” aos filmes desses países (fazendo uma pequena injustiça ao resto do continente asiático.)


"Whot is yo function in loif?" 1, pergunta um assassino contratado (Vinnie Jones), um britânico a trabalhar no Japão. “Nenhuma”, diz Aman (Asano Tadanobu). “Ha... cool”, o assassino sorri de volta e oferece a Aman um desconto especial para assassinar a mulher deste. «Survive Style 5+» («Survive Style 5+», 2004) é o filme de estreia do realizador Sekiguchi Gen e do argumentista Tada Taku, os quais produziram alguns filmes publicitários curtos bem recebidos no passado. «Survive Style 5+» pode, na verdade, ser visto como um filme “curto” de duas horas, uma compilação-turbo de cores muito saturadas, imagens extravagantes, sons psicadélicos e gags mais ou menos hilariantes — tudo o que pode normalmente ser encontrado na publicidade televisiva bem sucedida. Joko (Koizumi Kyoko), outra personagem do filme, que escreve guiões extremamente bizarros para anúncios de TV, chega a explicar a dada altura como fazer uma longa-metragem a partir de ideias de publicidade.

Survive Style 5+
Survive Style 5+
No entanto, há mais que mera auto-ironia e estética hiper-estilizada nesta comédia do absurdo. Cinco histórias ridículas com personagens impossíveis, as quais no início parecem ter pouco, se alguma coisa, em comum, revelam estarem relacionadas e influenciadas umas pela outras, à medida que o filme progride até um final realmente recompensador. A história do sr. Kobayashi (Kanjiva Shihori) — um homem de negócios de família mais velho, o qual parece ser inicialmente o único “normal” entre as personagens principais do filme, mas que, eventualmente, depois de se tornar num pássaro, se encontra numa situação impossivelmente absurda — pode ser o centro simbólico entre os cinco “estilos”. Com a ajuda do seu filho pequeno, Tatsuya (Kishibe Itoku), entendem que, por muito absurda que uma situação seja, ninguém deve desistir de procurar a sua “function in loif” para poder sobreviver.

O Japão veloz numa das suas mais refrescantes, coloridas e loucas propostas de cinema.


Belas cores e um visual surreal muito estilizado dominam também o último filme de Miike Takashi, ainda que o seu «Big Bang Love, Juvenile A» («46 Oku Nen no Koi», 2006) siga a um ritmo e numa direcção completamente diferente. A história deste filme — o título original japonês traduz-se por “O Amor de 4600 Milhões de Anos” — segue uma relação emocional homoerótica entre dois prisioneiros juvenis. Por coincidência, o tímido Yun (Matsuda Ryuhei) e o violento Shiro (Ando Masanobu) são presos no mesmo dia pela mesma razão: assassínios violentos.

Big Bang Love, Juvenile A
Big Bang Love, Juvenile A
No início do filme vemos um prisioneiro a estrangular outro. Enquanto a vítima expira o último fôlego, o agressor chora... É Yun. O nome do que jaz morto no chão é Shiro. No entanto, depressa entendemos que aquilo que parece um óbvio homicídio é apenas a consequência de um passado complexo, revelado numa história que alterna entre o presente e o passado e regressa a futuros possíveis. Uma série de flashbacks e de fragmentos da memória de Yun e Shiro misturam-se com os seus desejos, ansiedades e tensões, no mundo onde eles estão presos. No final, detectives resolvem o homicídio de Shiro, mas a verdadeira resolução permanece por revelar e oculta no seio da relação entre Yun e Shiro. Miike não oferece uma saída fácil para entender os seus dois protagonistas, no entanto, sugere algumas vezes que o abuso de menores pode ser o verdadeiro crime a pedir condenação.

A prisão, mostrada numa subtil atmosfera ocre-amarela, é o palco central deste mistério existencialista, num sentido muito literal, uma vez que muitas cenas assemelham-se fortemente a uma peça de teatro. Mas a prisão também oferece uma poderosa metáfora da nossa vida moderna — como Miike nos recorda nas cenas finais. Cada um é uma prisão voluntária do quotidiano.

Este é um filme de Miike Takashi. É difícil permanecer-lhe indiferente.


«Summer Palace» («Yihe Yuan», 2006) é um drama sensível desenrolado sobre o fundo das recentes mudanças políticas e sociais na China. A história principal foca-se num jovem casal, Yu Hong (Hao Lei) e Zhou Wei (Guo Xiaodong), os quais, durante os seus anos estudantis em Pequim, se envolvem numa relação apaixonada e imprevisível. É interessante seguir o modo como a relação ecoa, de algum modo, um estado de espírito mais geral na China de final dos anos 80. Com o seu fervoroso amor, Yu Hong e Zhou Wei parecem tão idealistas e ingénuos quanto os seus eufóricos colegas universitários, os quais experimentam, pela primeira vez naquele momento, uma verdadeira liberdade pessoal e um travo de liberdade política. Como se o filme sugerisse que as relações íntimas dependem inevitavelmente da relação do indivíduo com a sociedade.

Summer Palace
Summer Palace
Quando, mais tarde, a relação entre os dois protagonistas se torna cada vez mais obsessiva, complexa e até violenta, percebemos que os sentimentos pessoais são muito mais difíceis de ultrapassar do que o caos circundante. Nesse momento, protestos estudantis clamando a democratização rebentam também, conduzindo ao trágico massacre da Praça de Tian'anmen. Na verdade, são usadas breves imagens originais mostrando as manifestações estudantis em Pequim, funcionando, de forma silenciosa mas eficaz, como um forte comentário político. (Devido ao facto de esta aparentemente inocente inserção não ter sido declarada às autoridades chinesas, o realizador Lou Ye foi proibido de exercer a sua actividade.)

Esta brutal mudança política também separa Yu Hong de Zhou Wei e podemos tomar esse momento como o clímax narrativo do filme. Na segunda parte, seguimos rapidamente o modo como ambos tentam adaptar-se as suas novas posições pessoais e sociais e lutar com insatisfação e vazio emocional.

O enquadramento próximo e os retratos íntimos das personagens através de uma câmara ao ombro sempre móvel são contrastados de forma eficiente com tomadas estáticas e distantes da cidade. Cada novo cenário é introduzido de um modo quase documental, com nomes e datas precisos, dando ênfase às contradições entre a vida íntima de cada um e o mundo social circundante. Peyman Yazdanian compôs música admirável, capaz de suster a atmosfera emocional ao longo de todo o filme. A excelente interpretação de Hao Lei é igualmente memorável.


Muito foi já escrito sobre o filme coreano «The Host» («Goemul», 2006) e sobre o seu realizador Bong Jun-ho. No entanto, parece que as opiniões variam muito 2. Não tanto no que toca a louvar ou rejeitar o filme enquanto tal, mas mais de que modo aproximar o filme ou qual é o seu tema principal. Um consenso parece existir quanto a dizer que «The Host» é um filme sobre um monstro e uma família, que é também onde a linha narrativa principal também se concentra — a luta da família contra o monstro. Na sequência de um incidente real, que ocorreu numa base dos EUA em Seul, há alguns anos, a história começa com militares norte-americanos a despejar químicos altamente tóxicos no Rio Han. Alguns anos depois, uma criatura mutante gigante, semelhante a uma lula, com um apetite imenso, surge na margem do rio. O monstro leva uma estudante de liceu, Hyun-seo (Go Ah-sung), o membro mais jovem da família Park (Song Kang-ho, Byung Hee-bong, Bae Doo-na, Park Hae-Il), que explora um quiosque onde se vende lulas secas (!) aos visitantes do Rio Han. A família Park inicia a caça à criatura.

The Host
The Host
Mas a caça não é apenas uma luta contra o monstro. Depressa se torna uma luta contra todos, à medida que os conspiradores militares e a ineficaz burocracia fazem tudo menos lidar com o rapto de Hyun-seo. O filme anterior de Bong Jun-ho, «Memories of Murder» já era também um comentário à incompetência burocrática, no entanto, aqui Bong vai mais longe, expondo explicitamente o absurdo desse pensamento. Ainda que «The Host» funcione eficazmente como um filme de horror, subverte o seu próprio género, ao mesmo tempo que é também um brilhante drama familiar e sátira social.

Ao vermos «The Host» em Seul, foi óbvio que a audiência coreana apreciava ridicularizar a ganância, incompetência e corrupção entranhadas na sua sociedade. Mas reacção similar do público esloveno durante a projecção no festival chegou-nos com alguma surpresa. Não porque a sociedade eslovena fosse imune à competência e à corrupção. Antes pelo contrário: não foi, de todo, difícil ver a nossa própria sociedade reflectida em «The Host». Ainda que exista uma óbvia referência à hipocrisia das autoridades americanas, a mensagem que subjaz ao filme não o torna anti-americano. O humor invulgar de Bong, direccionado para questões sociais e políticas, parece universal o suficiente para apelar a uma audiência alargada.

«The Host» é também um filme sobre o Rio Han. Não apenas porque a maior parte da acção tenha lugar ao longo dos seus bancos, sob uma atmosfera negra, enevoada e chuvosa e debaixo das pontes serpenteantes ou no meio de esgotos lamacentos. Bong consegui capturar um retrato impressionante da hanscape 3, que funciona como um cenário perfeito para o filme. Byung Hee-bong está excelente como sénior da família Park, bem como Song Kang-ho, interpretando o seu filho, e a jovem Go Ah-sung. O monólogo de Byung Hee-bong sobre o seu filho miserável pode estar entre os momentos mais notáveis do filme. Tal como o seu memorável relato da história do “Boiler Kim”, no primeiro filme de Bong, «Barking Dogs Never Bite».


The Promise
The Promise
Não há filme coreano sem chuva, não sendo «The Host» excepção, e não há filme chinês sem a queda de folhas de cerejeira em flor. «The Promise» («Wu Ji», 2006), do realizador Chen Kaige, tem não só imensas cerejeiras em flor, mas também infinitos campos verdejantes, desertos assustadores, misteriosas florestas enevoadas, lagos frios e fundos e um palácio proibido. Existem deuses semelhantes a humanos e humanos aspirantes a deuses, guerreiros míticos e uma princesa realmente bela. Tem também um guarda-roupa sumptuoso e efeitos especiais excessivos (que ficam abaixo de «The Host» em termos de qualidade). O que de alguma forma falta ao filme é um argumento convincente, com base nas relações entre a princesa e três protagonistas masculinos.

Para se tornar rica e bela, uma jovem órfã vende a alma a uma deusa misteriosa. Muitos anos depois, três guerreiros lutam pela princessa Qingcheng (Cecilia Cheung), cada um deles com diferentes motivações. O General Guangming (Sanada Hiroyuki) é ganancioso e egoísta, o pérfido e impiedoso Wuhuan (Nicholas Tse), movido pela vingança, enquanto o honesto Kunlun (Jang Dong-gun) é um escravo, suspirando por verdade e amor. Nenhum deles tem conhecimento da promesa que a princesa fez quando criança. Todos os que ela amar serão amaldiçoados para sempre.

Não esperamos um história plenamente credível e lógica com personagens complexas num conto de fadas. Gostamos de contos de fados devido à sua magia e porque queremos ver o Bem triunfar sobre o Mal. «The Promise» oferece ambas as coisas. É uma magnífica viagem visual e o Bem acaba por vencer durante um final excessivamente melodramático. Tal como qualquer conto de fadas, também não é muito difícil traçar paralelos morais ou de outra natureza entre o mundo imaginado e o real.

O filme chinês mais caro de sempre perdeu, talvez, a sua oportunidade de se tornar algo mais do que um fabuloso conto de fadas, mas, no entanto, imerge-nos facilmente num mundo mágico, misturando ópera tradicional com uma estética visual de cartoon.


Little Red Flowers
Red Little Flowers
É quase impossível não gostar de um filme onde o actor principal é um miúdo chinês de quatro anos com os olhos mais adoráveis do festival. Talvez fosse mais adequado chamar a «Red Little Flowers» («Kan Shang Qu Hen Mei», 2006) “Pequenos Olhos Negros”. A história tem lugar num jardim-escola, onde tudo gira em redor do pequeno rebelde Qiang (Dong Bowen), um miúdo de quatro anos que torna a vida da sua professora autoritária Ms. Lee (Zhao Rui) tão difícil quanto possível. Ainda que Qiang não se oponha à professora intencionalmente, as consequência são sempre as mesmas — no final do dia ele não obtém nenhuma das pequenas flores vermelhas que Ms. Lee dá às crianças pelo seu comportamento “correcto”. Se pequenas flores vermelhas conduzem as acções de Qiang no início, as suas motivações tornam-se menos óbvias mais tarde, quando ele insulta outra professora mais indulgente (Li Xiaofeng).

Apesar da história não ser, de um modo geral, abordada pelo ponto de vista das crianças, é, no entanto, enquadrada a partir da visão delas. A câmara mostra literalmente o mundo tal como é visto por crianças pequenas. Mesmo que cocó, chichi e banhos, que figuram com frequência ao longo do filme, pareçam de algum modo exagerados, a vida é toda sobre isso quando se tem três ou quatro anos. No seu papel, Dong Bowen, com os seus pequenos colegas, é simplesmente espantoso e podemos perguntar-nos como é que o realizador Zhang Yuan conseguiu capturar a vida das crianças de uma forma tão directa e autêntica.

O filme é um retrato bem humorado e encantador de um pequeno rebelde, claramente mais do que um afectuoso conto de fadas. Sem dispensar um tom acutilante, Zhang Yuan conseguiu colocar questões sobre a socialização, normalidade, castigo e conformidade, num mundo de crianças inocentes, com uma sensibilidade muito equilibrada.


Election
Election
Chegou o tempo da Sociedade Wo Shing, a tríade mais antiga de Hong Kong, eleger um novo líder. Os respeitáveis seniores têm de escolher entre o aparentemente calmo e racional Lok (Simon Yam) e o violento e e neurótico Big D (Tony Leung), com este último a ir contra a tradição sem hesitar, para manter a sua posição de liderança. Quando uma decisão é finalmente tomada, um antigo bastão do Dragão, o símbolo do poder da tríade, é roubado, dando início a uma caçada feroz, seguida por uma brutal luta pelo poder.

O facto das tríades, em certa altura organizações patrióticas que protegiam os chineses dos opressores estrangeiros, se terem transformado em grupos criminosos apenas interessados no lucro não é nada de novo. O que distingue «Election» («Hak Se Wui», 2005), o último filme do veterano realizador de Hong Kong Johnnie To, é um relato surpreendentemente diferente sobre as tríades, comparado com propostas mais conservadoras dentro deste género. Ainda que muitas personagens intrigantes do submundo surjam ao longo do filme, não é fácil acompanhar todas as suas histórias. Mesmo os seus rostos são, por vezes, difíceis de lembrar, dado que a maior parte da acção tem lugar no escuro. É como se o realizador quisesse que nos focássemos mais na tríade como um todo: a organização da tríade como um organismo. O pragmático superintendente da polícia (David Chiang) torna-o muito claro: “Se cortarmos um braço a uma tríade, um novo crescerá.” Os protagonistas individuais não são importantes. O que conta é o respectivo papel no seio da organização e as relações mútuas, expostas através de falsas lealdades, traições frequentes, confrontos brutais e compromissos impostos. Apesar de tudo, existem indivíduos memoráveis no filme, como o velho boss “Tio” Teng, interpretado pelo excelente Wong Tin-lan ou Lok e Big D.

Este pode ser o filme mais “asiático” do festival, no que toca ao tema que lhe é subjacente. Ainda que assentes firmemente nos seus próprios contextos sociais ou geográficos, a maioria dos restantes filmes asiáticos presentes no festival, focam-se em questões universais ou muito individualizadas, enquanto «Election» traz uma noção particularmente asiática de uma resposta colectiva ao embate entre a tradição e a modernidade. Por um lado, existe um colectivo assente na confiança social, que aparentemente venera a tradição acima de tudo o resto. Mas, por outro lado, a tradição pode tornar-se, a qualquer momento, um instrumento para a realização de egoísmos individuais.

Um olhar de mestre ao interior da violenta vida das tríades. Um final algo chocante abre espaço para o próximo filme de Johnnie To.


Melon Route
Melon Route
Ainda que não seja asiático no que à sua origem diz respeito, o filme croata «The Melon Route» («Put Lubenica», 2005), tem muito que ver com a Ásia. A história, baseada num caso real, tem lugar na fronteira entre a Croácia e a Bósnia Herzegovina, onde um jovem veterano da guerra, Mirko (Krešimir Mikić), ganha dinheiro a passar imigrantes ilegais através do rio. Numa ocasião em que o barco sobrelotado se afunda, uma dúzia de imigrantes chineses morrem nas águas e apenas uma jovem (Sun Mei) sobrevive. Ajudando-a, Mirko descobre subitamente um novo sentido para a sua vida arruinada e uma oportunidade para voltar a tornar-se parte da sociedade. A vingança contra a máfia local, que vê a rapariga chinesa como uma testemunha indesejável e a rapta, torna-se para Mirko não só uma luta pela liberdade dela, mas também contra os seus traumas e uma situação sem rumo, causada pela guerra recentemente terminada.

Este filme não é apenas sobre o encontro do asiático com a Europa. Deve também ser visto como um filme sobre o encontro do europeu com a Europa e um encontro com lugares e pessoas que são empurradas para a periferia da Europa. Um encontro com a Europa, desconhecida ou ignorada por muitos de nós, mas obviamente familiar a muitos imigrantes asiáticos ou “melões”, termo usado pela máfia local para os denominar, com base na aparente forma das suas cabeças. É também aí onde o título do filme tem origem.

Temas sociais e políticos sobre tráfico humano e a esquecida situação pós-guerra nos Balcãs estão bem combinados com a história de Mirko e da rapariga chinesa. Apesar dos dois pertenceram a mundos diferentes, impossibilitando a comunicação entre eles — os diálogos em chinês, que no filme ficaram por traduzir, acentuam-no —, a situação à margem permite-lhes ultrapassar as diferenças culturais e construir um entendimento mútuo.

Posters
Apesar deste ano não ter havido nenhuma secção especial dedicada Ásia no LIFFe, alguns dos filmes asiáticos foram bem recebidos pela audiência eslovena e pelos media locais.
A sublime fotografia de um rio profundo e preguiçoso e noites deprimentes ensopadas de chuva, criam uma atmosfera negra no filme. O realizador Branko Schmidt deixa-nos com pouca esperança. Uma estreia bem sucedida para Sun Mei, mas é Krešimir Mikić quem merece maior crédito no que toca ao trabalho de interpretação.


Os outros filmes asiáticos presentes no 17º Festival Internacional de Cinema de Ljubljana foram «Isabella» («Isabella», 2006), um drama melancólico de Pang Ho-cheung sobre um polícia de Hong Kong e a sua filha perdida, «A Perfect Couple» («Un Couple Parfait», 2005), de Suwa Nobuhiro, apresentado como “um drama de divórcio burguês francês realizado por um japonês” 4, «Three Times» («Zui Hao de Shi Guang», 2005), de Hou Hsiao-hsien, com três histórias protagonizadas pelos mesmos actores, questionando de que modo as emoções se ajustam à época em que vivemos, e «Dam Street» («Hong Yan», 2004), um filme emotivo do realizador Li Yu, sobre uma gravidez adolescente e uma amizade impossível numa aldeia do interior chinês.


O prémio principal, o Kingfisher Award, foi atribuído a Annette K. Olsen pelo seu filme «1:1 En til En». (Foto: Simon Sintiè, NETPreSS)
Jafar Panahi recebeu o prémio Amnesty International Slovenia por «Offside». (Foto: Simon Sintiè, NETPreSS)
Há alguns anos costumava haver secções especiais com cinema japonês, coreano e taiwanês no LIFFe. Não neste ano. Em todo o caso, os filmes asiáticos não passaram despercebidos perante o olhar dos media locais e dos críticos de cinema. Alguns, como «The Host», «Summer Palace» e «Three Times», por exemplo, foram recomendados como “a ver urgentemente”, antes da abertura do festival. O resultado foi bastante notório durante as projecções dos filmes referidos, em salas completamente esgotadas.

No final, o LIFFe deixa-nos com uma impressão “equilibrada” dos filmes asiáticos seleccionados, no que toca à sua geografia, temas, género e qualidade. Todos os filmes asiáticos já estiveram presentes ou foram premiados anteriormente em outros festivais de cinema, o que garante uma certa segurança aos programadores. Desta forma, a organização pode estar certa que os filmes seleccionados serão bem recebidos pela audiência e que se venderá um número suficiente de bilhetes. Não que exista algo de errado quanto a isso. Tal como os comentários acima terão demonstrado, todos os filmes asiáticos no LIFFe valeram bem a pena.

No entanto, com uma selecção menos previsível poderíamos ter tido a oportunidade de conhecer outros intrigantes mas menos conhecidos realizadores e filmes da Ásia. No caso do cinema coreano, por exemplo, «The Host» foi apresentado em Ljubljana menos de quatro meses depois da sua estreia em Seul, o que nos mostra quão rápido os filmes circulam no mercado mundial hoje em dia. A disponibilidade limitada não é, portanto, desculpa para ignorar a produção coreana e asiática menos conhecida. No último ano muitos bons filmes coreanos foram produzidos — pense-se, por exemplo, em «Family Ties», de Kim Tae-yong, ou «Holiday», de Yang Yun-ho — e podemos perguntar-nos porque é que os programadores dos festivais de cinema ignoram tais filmes.

O catálogo do festival sugere que alguns dos filmes asiáticos já têm distribuidores locais, o que nos deixa com esperança que audiências mais vastas poderão em breve ter a oportunidade de os apreciar. Por outro lado, os outros poderão aguardar com expectativa a próxima edição do LIFFe, com uma nova selecção de bons filmes.

Texto relacionado:
Entrevista com Jay Jeon, membro do júri.


(Original) English version


10/12/06

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Notas da tradução e do editor:

(1) “Qual a sua função na vida?” ou “Qual é a sua ocupação?”, com uma pronúncia vincada reproduzida pela grafia.

(2) A opinião de Blaž Križnik é a terceira neste site, seguindo a de Jordi Codó (sobre Sitges) e a do editor, aqui.

(3) Contracção de Han com landscape (paisagem).

(4) A bonita aliteração não existe no texto original, mas preferiu-se manter a tradução fiel o mais possível à frase original.

cinedie asia © copyright Luis Canau.