|
DVD HK Video (França).
|
Década de 20 do século passado.
A China é uma república há pouco mais de dez anos, mas não há ainda um centro
de poder unificado. Existem várias concessões sob o controle de potências
estrangeiras, como o Reino Unido e o Japão, cujo poder militarista manifesta
interesses expansionistas pelo continente asiático. Chen Zhen (Li) estuda
no Japão, onde tem conhecimento da morte do seu mestre, Huo Yuanjia, em Shanghai,
durante um combate com Akulagawa, do clã japonês Dragão Negro. Chen
parte para a China, deixando a namorada japonesa, Mitsuko (Nakayama). Em
Shanghai, Chen constata que o combate que levou à morte de Huo foi viciado,
mas, entretanto, vê-se confrontado com uma acusação de homicídio. Remake
de «Cheng Miu Moon/Fist of Fury» (1971) de Lo Wei, com Bruce Li Xiaolong.
«Fist of Legend» é um dos mais célebres
filmes de artes marciais dos tempos modernos, sendo frequentemente colocado
em listas dos melhores filmes produzidos em Hong Kong, qualquer que seja
o seu "género". As reacções positivas ao filme abrangem tanto os fãs de filmes
de acção como a crítica "especializada", devendo-se tal à excelente harmonia
que Gordan Chan soube manter entre o drama e a acção. Este reconhecimento
não foi imediato, pelo menos não em Hong Kong, onde a recepção do público
foi morna. Os principais envolvidos – e Li assume também a posição de produtor
– não se arrependeram, até porque o impacto internacional foi essencial nos
contratos de Yuen Woo-ping e Jet Li com estúdios de Hollywood.
Chan e Li optaram por evitar colagens ao filme com o qual seria inevitavelmente comparado, uma vez que se trata de um remake – «Fist of Fury»
–, da mesma forma que a performance física de Jet Li nunca se procurou aproximar
da de Bruce Lee, até porque os tempos eram outros e o estilo de encenar e
filmar acção nos anos 70 muito dificilmente poderiam conviver com a acção
mais realista, as coreografias mais intrincadas ou o modo de enquadrar e
montar do cinema de Hong Kong dos anos 80-90.
|
|
Dois emblemáticos momentos do cinema de artes marciais: Lee contra Kurata, à esquerda, e contra Chow, à direita.
|
A história-base dos dois filmes é naturalmente
similar. Ambos se baseiam num facto histórico, a morte do mestre Huo Yuenjia
(aparece uma fotografia real em ambas as obras), que – de acordo com Bey
Logan – foi, de facto, um pouco suspeita. As personagens centrais são substancialmente
diferentes: Lee é uma máquina de matar irracional, possuído pelo espírito
da vingança, que toma conta do seu corpo (nas palavras de Christophe Gans);
Jet Li encarna um Chen em perfeito controle da sua mente, calmo e com consciência
das consequências dos seus actos. Narrativamente, outra diferença relevante
é o modo como os japoneses são retratados: no primeiro filme, são apresentados
como homicidas sanguinários, sem quaisquer laivos de caracterização ou características
redentoras; em «Fist of Legend», há bons japoneses e há maus japoneses,
estabelecendo-se uma clara oposição entre a honra e a honestidade dos praticantes
de artes marciais e de políticos ingénuos – a figura simpática do diplomata
– e as ambições de domínio e expansão dos militares, decididos em obter
resultados a qualquer custo. Esta clara oposição moral reflecte-se também
na disputa sobre quem detém o verdadeiro "espírito do samurai".
|
Li (Chen Zhen) e Nakayama (Mitsuko).
|
Um factor de grande enriquecimento narrativo
e dramático é a personagem de Mitsuko, interpretada com uma característica
distinção, difícil de encontrar em actrizes não japonesas, por Nakayama Shinobu
(em «Fist of Fury» o papel do "interesse romântico" de Lee/Chen
é desempenhado por Nora Miao Ker-hsui, uma jovem de Jingwu Mun). Mitsuko está
longe de ser um adorno, antes se revela um elemento vital no conflito cultural,
resultante da ocupação do território, sendo sintomático o modo como a escola
de Chen encara a relação de Lee com Mitsuko, por oposição à de Ting-en (Chin)
com Hsiao Hung. Para além de questionar a "fidelidade" do protagonista às suas
raízes e à sua cultura, a personagem também dá vida a um conflito no âmbito
do drama romântico, devido ao modo como se expõe publicamente, não deixando
grandes hipóteses a Chen, que, além de ser um patriota chinês, no seio de
um país ocupado e controlado por várias potências estrangeiras, é também
um homem de honra e com sentimentos. Aqui se pode também estabelecer nova
diferença com o Chen Zhen de Bruce Lee, para o qual não havia qualquer hesitação,
nem nada que o pudesse desviar do seu objectivo final.
|
Chen Zhen contempla a "contenção" (ren).
|
Em relação à representação das artes marciais, «Fist of Legend»
beneficiou do trabalho do experiente Yuen Woo-ping e da visão dramática de
Gordon Chan. Em filmes de artes marciais, em Hong Kong, é natural que o director
de acção receba um crédito ao mesmo nível do realizador do filme e que este
nem sequer intervenha na rodagem dessas cenas, podendo nem sequer estar presente
no estúdio. O director de artes marciais cria as coreografias, escolhe a
posição das câmaras e compõe os enquadramentos, para além de ter um olho
na fase de montagem; isto é, tem uma visão completa do produto final (por
alguma razão o trabalho dos coreógrafos de acção contratados por Hollywood
continua a ter o aspecto aborrecido da acção a la Hollywood). Em «Fist of Legend»
houve um compromisso, pois Chan definiu o estilo do filme, incluindo a acção,
ao mesmo tempo que permitiu que Yuen fizesse o seu trabalho, sem grande interferência,
para além de algumas limitações: por exemplo, Chan garantiu que os interiores
tivessem tectos baixos, para que Yuen não se lembrasse de usar fios. Chan
também optou por takes falhados, por pensar que davam um tom mais naturalista
à acção. Por exemplo, numa cena em que um oponente de Chen Zhen é projectado pelos ares,
sendo suposto atravessar uma janela, o realizador preferiu o take em que
o duplo fica atabalhoadamente pendurado a meio caminho.
|
Chen visita o dojo japonês e não descalça os sapatos.
|
A equipa de Yuen Woo-ping integrou dois dos seus
irmãos, Cheung-yan e Sun-yi, além de Kuk Hin-chiu. Os Yuen, entre extensos
créditos, trabalharam também numa outra referência incontornável do cinema
de artes marciais dos anos 90, «Wong Fei-hung/Once Upon a Time in China»
(1990) de Tsui Hark. Yuen Cheung-yan, que também desempenha aqui o papel
do chefe da polícia, inclui também no seu currículo os “efeitos especiais
de artes marciais” do pós-moderno «Os Anjos de Charlie»
(2000). Com a contratação de Billy Chow e do japonês Kurata Yasuaki – secundário
habitual de filmes de acção produzidos na década precedente a «Fist of Legend», como «Kei Mau Miu Gai Ng Fook Sing/Winners and Sinners» (1983) ou «Foo Gwai Lit Che/Millionaire's Express»
(1986), ambos de Sammo Hung Kam-bo – Gordon Chan tinha os ingredientes ideais
para cozinhar este excelente filme de artes marciais. Segundo o realizador,
em entrevista conduzida para integrar o DVD francês da HK Video, Chow – habituado
a performances exigentes ao lado de Sammo Hung («Kwan Lung Hei Fung/Pedicab Driver», por exemplo) e Jackie Chan («Kei Chik/Miracles»)
– ficou com as pernas repletas de hemorragias internas, durante a rodagem
da cena final e, ainda assim, insistia que estava tudo bem, não querendo interromper
as filmagens. Regressaria posteriormente do hospital para o estúdio, preocupado
com a possibilidade de Yuen Woo-ping ainda precisar dele para repetir algum take. O impacto
das cenas de acção em filmes do género exigia verdadeiro sacrifício físico
por parte dos actores e duplos: nada de golpes a passar ao lado do corpo,
camuflados pela selecção de ângulos de câmara enganadores, mas contacto real,
ainda que com controle e protecção debaixo da roupa, conforme os casos.
«Fist of Legend» tem uma componente dramática
mais bem desenvolvida de que muitos bons filmes de acção "puros", pelo que
seria injusto defini-lo como um "mero" bom filme de acção, como por vezes
é usual em tom de desculpa pela apreciação de algo sem "mérito artístico"
(os ditos "prazeres culposos", se é que a expressão passa bem para o português).
Não é, de todo, um filme do qual se possa dizer que a história não tem interesse
ou está mal definida, mas que pode ser apreciado apenas pela acção. As duas
componentes estão muito bem associadas e as artes marciais, podendo constituir uma
razão para nos levar a ver o filme, não se integram num fio narrativo que se
limita a avançar da Cena de Acção A para a Cena de Acção B. Não estamos na presença de um bom filme de artes marciais, mas sim de um bom filme.
|
O vicioso General Fujita Gou (Chow Bei-lei).
|
Esta obra de Gordon Chan é um dos filmes mais
procurados por apreciadores de cinema asiático em geral e de artes marciais
em particular, tendo sido, com grande pena de todos, adquirida pela Miramax,
que, como é seu apanágio, não disponibiliza a versão original, apenas a remontada
e com dobragem em inglês. A criação de uma faixa de dobragem para aqueles
que não sabem ou não querem ler (sobretudo os anglófonos que dizem que se
quisessem ler, liam um livro, e que não conseguem acompanhar o texto e seguir
a acção ao mesmo tempo) constitui naturalmente uma redução da obra original,
sendo agravada por casos com o de «Fist of Legend», onde a questão
da linguagem tem relevo a nível do guião, ilustrando as especificidades culturais
das diversas personagens. É certo que não há um realismo pleno no que a isso
toca – o dialecto de Shanghai não é o cantonês, e alguns actores mudam de
voz, consoante falam chinês ou japonês – mas há diversos momentos no filme
em que a incompreensão entre uns e outros precisa dessa distinção. Há momentos
em que a versão inglesa atinge o ridículo, como no tribunal em que temos
um intérprete chinês a traduzir os testemunhos para o juiz inglês e se faz
a “tradução” de inglês para inglês, ou seja, o homem ouvia muito mal. A sequência
inicial dos créditos também ilustra muito bem o que vai na cabeça dessas
pessoas: removeram-se os créditos originais e criaram-se outros sobre motivos
"orientais", com fumo de incenso por cima. De bradar aos céus.
|