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Zatoichi em Paris
Master Class - Conversa pública com Kitano.

Encontro com o realizador e actor Kitano Takeshi a propósito do seu novo filme, «Zatoichi»

[fr]

Zatoichi
Tradicionalmente, é o fervor dos fãs que permite distinguir um realizador de culto. Estando previsto um encontro entre o cineasta e o público, os fãs acampam com pelo menos meio-dia de antecedência em frente à entrada. Foi o caso com Kitano 'Beat' Takeshi, feito messias para um bom número de cinéfilos. De passagem por Paris, para promover a saída do seu filme «Zatoichi», Kitano participou num encontro organizado pela revista Ciné Live e pela Fnac Saint-Lazare, numa sala Forum da Fnac, no dia 14 de Outubro de 2003. A entrevista foi coordenada pela Ciné Live. O canal de TV Ciné 6 transmitirá excertos, no próximo domingo ou aquando da saída do filme nas salas francesas.

A sala Fórum da Fnac, bastante agradável, é demasiado pequena para receber os jornalistas e os fãs. É uma grande pena que este acontecimento não tenha sido organizado num anfiteatro como o do Forum des Images. Coloco-me no lugar do fã de Kitano que, não tendo convite, aguardou durante horas a chegada do artista japonês, mesmo sem o poder vislumbrar. Em todo caso, se este vosso servo tivesse chegado mais cedo, estaria certamente na primeira fila. Foi, pois, do fundo da sala que registei o encontro, no meio dos fãs, de pé, durante a entrevista. Como se nos tivéssemos levantado para o aplaudir e depois já não tivéssemos querido sentar-nos.

A entrada de Kitana é fortemente saudada. Com um passo tranquilo, o nosso actor-realizador dirige-se para o lugar que lhe está destinado. O “yakuza” instala-se, mas os aplausos sonoros persistem. Os espectadores aplaudem de pé.

Muito rapidamente, o jornalista da Ciné Live começa a colocar as suas questões. Kitano responde de modo muito sério, mas não sem um certo humor. Menos imperturbável que nos seus filmes, o nosso “yakusa” explica que, até então, os seus filmes nunca resultaram economicamente e lhe dão apenas para ir vivendo, até chegar ao momento em que lhe ofereceram «Zatoichi», um filme de encomenda. E assim chegou o grande resultado nas bilheteiras japonesas! Revela também que antes de «Hana-Bi» não era considerado como um realizador. Começou na indústria como actor. Foi sob a direcção do cineasta Oshima Nagisa que surgiu a vontade de se tornar realizador. Oshima, considerado como um tirano, poupou-o, a ele e a Sakamoto, durante a rodagem de «Feliz Natal, Mr. Lawrence». De facto, Kitano e Sakamoto negociaram a sua tranquilidade perante Oshima, sabendo que o homem era impiedoso. O nosso “yakusa” não se deixa manipular facilmente.

Kitano
Kitano Takeshi – Conferência de Imprensa em Paris (13-10-2003).

Foi a senhora Saito Chieko, mulher de garra, proprietária de diversos bens imobiliários e igualmente produtora, que pediu a Kitano, o qual conhecia desde o início da sua carreira, para fazer reviver a lenda Zatoichi. Zatoichi, personagem imensa, é conhecido até à ilha de Hong Kong. Wang Yu, actor muito célebre nos anos 60-70, chegou a enfrentá-lo em combates homéricos. Wuxia pian contra chambara! Mesmo Bruce Lee havia tido a ideia de um Zatoichi chinês, mas o projecto nunca saiu do papel.

Para Kitano Takeshi parecia impossível dissociar Zatoichi do actor Katsu Shintaro, que encarnou a personagem tanto no pequeno como no grande ecrã, e teria de ser Kitano, ele mesmo, a encarnar o ronin cego. A senhora Saito será mais persuasiva que os próprios yakusa. É, assim, difícil para Kitano dizer-lhe não, além de que a venera como sua mãe. Estranho para um homem que interpreta yakuza viris... Mesmo aqui, em França, ele confessa, sem rir – torna-se solene – que não pode dizer senão bem desta mulher de punhos de ferro, para que nada de diferente lhe chegue aos ouvidos. Pergunta a um espectador, que conheceu a senhora Saito no Japão, se ainda possui todos os seus dedos, algo que provoca o riso, tanto em Kitano como na assistência.

Deste modo, apesar do seu terror perante esta produtora, ele conseguiu, ainda assim, negociar o seu espaço criativo. Imaginamos as dificuldades que encontrou para ser o mais fiel possível à personagem de Zatoichi. Não podemos deixar esquecer o célebre Katsu Shintaro, pois Zatoichi é ele e mais ninguém.

Uma espectadora japonesa pergunta-lhe se não se inspirou em «Dancer in the Dark», uma vez que a banda sonora e a coreografia se assemelham-se às do filme de Lars von Trier, que usa os sons ambientes como construção sonora. Kitano, sem sombra de hesitação, afirma que começou a ver «Dancer in the Dark» e que o achou muito sombrio, pelo que viu o resto em fast-forward. O público desmancha-se a rir. A bem dizer, concebeu o filme em termos de ritmo de sapateado. Assim recorreu ao grupo The Stripes, dirigido pelo respectivo mestre de sapateado.

Kitano
Kitano Takeshi – Conferência de Imprensa em Paris (13-10-2003).

Em relação à direcção, é-lhe perguntado se a sua câmara não está agora mais movimentada, abandonando o estilo estático que lhe é característico. Para «Zatoichi», foi necessário que o filme fosse mais dinâmico e, por razões ligadas aos cenários, preferiu fazer mexer mais as câmaras do que as personagens (o que poderia resultar em anacronismos, segundo ele). Devido a este estilo de filmar, alguns críticos no Japão disseram, sarcasticamente, que Kitano sabe finalmente filmar um plano de cinema. Esta história volta a provocar a hilaridade geral. É difícil de acreditar nas diferenças de opinião entre o Ocidente e o Oriente. Aqui, Kitano é um cineasta de culto, com fãs a acampar às 6 da manhã para poderem participar num encontro como este; do outro lado, no Japão, ele não é sequer levado a sério.

Chega a sempiterna questão das cenas de humor (por exemplo, os adultos que se abandonam a jogos infantis), sendo-lhe solicitada uma explicação. Segundo Kitano, é difícil estar-se sério durante muito tempo. Constrói elementos humorísticos para baixar a pressão das cenas... É também necessário ter em conta a natureza própria de um cineasta que têm igualmente talento para o humor.... E, muito naturalmente, ele responde, jocosamente, que é difícil para um panda dizer que é um panda... E será que pedimos a um panda para se explicar?

Sem se deixar abater, o jornalista coloca outra questão sobre as cenas recorrentes “junto ao mar”. Porquê tantas cenas na praia? Kitano Takeshi não consegue parar de rir. Diz que já lhe colocaram a questão imensas vezes e que ele costuma dar uma resposta muito complicada, a propósito da génese do mundo a partir dos oceanos, etc. A assistência rebenta de riso... O cineasta convence a sua audiência dizendo simplesmente que há que ser lógico e que o Japão é uma ilha, logo cercado de água por todos os lados. Os únicos locais facilmente acessíveis para filmar são as praias. A sala escangalha-se. Não há dúvida, Kitano possui um humor incrível e revela-se capaz de fazer subir a tensão até à explosão. Como sublinho a todo o momento, ele não é tão imperturbável como nos seus filmes. Mexe-se, coça-se, vira a cabeça... Em suma, está longe da imagem gélida que poderíamos ter dele.

A tensão com Hisaishi Jo é, aparentemente, uma questão delicada. Custou-lhe responder. Em todo o caso, Kitano afirma que, sendo certo que Hisaishi Jo possui um universo musical pessoal maravilhoso, não se conseguiu adaptar à cor musical que ele esperava para o filme. A longa metragem comporta já uma estrutura baseada no sapateado e nas percussões. Por outro lado, sendo Hisaishi cada vez mais conhecido (é também o músico habitual de Miyazaki Hayao), os seus honorários estão cada vez mais exorbitantes, sendo isto o que viria a exclui-lo da ficha técnica de «Zatoichi».

Kitano explica também a sua maneira de representar. Usa um duplo que filma primeiro para anotar que erros não deve cometer. Quanto à sua maneira de dirigir os actores, deixa-os inteiramente livres. Dá como exemplo a forma de dirigir um cão. Não podemos exigir ao animal que exprima as emoções de que estamos à espera. Basta, pois, enquadrar bem e inserir uma música adequada para que se obtenha o efeito desejado. E, através de uma redução inacreditável, afirma dirigir os seus actores como animais, o que provoca alguns “oh!” indignados na assistência.

Kitano
Kitano Takeshi – Conferência de Imprensa em Paris (13-10-2003).

Constata-se, ao longo da discussão, que Kitano é um cineasta repleto de técnicas cinematográficas. Dá o exemplo da publicidade a massas. Não serve de nada demonstrar as qualidades da massa. O que é necessário é sugerir a ideia de que são boas e o espectador fará o resto. O cinema de Kitano é assim um cinema que permite ao espectador a sua livre interpretação. É uma regra que evita demasiados planos para situar a acção. Não existirá (já) realmente um cinema estampado Japão, mas cinema ponto. Kitano corrobora isto, declarando que o mundo se estreita e que as diferenças entre os países se esvanecem. Hoje em dia, temos acesso a uma certa quantidade de filmes e o que os deve distinguir uns dos outros são os bons cineastas.

O encontro termina calmamente. Kitano retira-se sob os costumeiros aplausos. Ficamos com a impressão de ter partilhado um momento muito particular com um cineasta excepcional, que responde de modo verdadeiramente subtil a questões que nem sempre o são. Faltou perguntar-lhe porque trata as mulheres do modo como as trata, depois da apresentação de um extracto de «3-4 x Jugatsu» [Boiling Point], onde maltrata fisicamente uma personagem feminina... Um mistério que será provavelmente esclarecido pelo registo da conferência de imprensa que Kitano deu para a promoção do seu filme. Os nossos dois redactores, Suraj e Kicket, cobriram o acontecimento. Depois de derushar o evento, o leitor poderá descobrir um pouco mais sobre o homem.

Na realidade, os nossos dois redactores, Suraj e Kicket, adoraram «Zatoichi» (em breve a crítica ao filme e o registo da conferência de imprensa de dia 13 de Outubro! Paciência.) Bato já o pé de impaciência pela saída do filme no dia 5 de Novembro [1]. Finalmente chambara excepcional no grande ecrã! Os curtos excertos que vi neste encontro Fnac-Ciné Live conquistaram-me de imediato! Esperar até ao dia 5 de Novembro será um calvário!

Gostava de agradecer a Luis Canau, de Cine Die (http://www.cinedie.com) e a Thomas, de HKCinemagic (http://www.hkcinemagic.com), sem os quais não poderia provavelmente ter contactado com o responsável pela imprensa, Richard Lormand. Agradecemos também vivamente a este último pela sua disponibilidade e a sua amabilidade.

Fotos de mão tremida: Julien Tribet dito Kicket
Site oficial de Zatoichi : http://www.office-kitano.co.jp/zatoichi/
O excelente site não oficial sobre Takeshi Kitano: http://www.takeshikitano.net

Athama Ashen


Cinedie Asia agradece a Eric H. Nguyen e à equipa Fantastikasia pelo trabalho desenvolvido, a Thomas Podvin (HKCinemagic), por ter possibilitado o contacto e pela ajuda na tradução, e a Richard Lormand por se ter lembrado de um insignificante site português, ainda que estas actividades estivessem relacionadas com a estreia francesa de «Zatoichi».

Traduzido do francês.
Version originale en Français: http://www.fantastikasia.net


[1] É, naturalmente, a data de saída do filme em França. A Atalanta Filmes irá distribuir «Zatoichi» em Portugal em 2004.

19/10/2003

cinedie asia © copyright Luis Canau.