Tao (Zhao) é dançarina no World Park de Pequim, namorando com Taisheng (Chen), que trabalha como segurança no mesmo local. O parque temático recria mais de uma centena de monumentos de 14 países de todo o mundo, como a Torre Eiffel, o Big Ben, a esfinge ou o Taj Mahal. Espectáculos teatrais e de dança procuram reproduzir um pouco da cultura de outros países. O mote é visitar o mundo sem sair de Pequim (“Dê-nos um dia, nós damos-lhe o Mundo”). No parque cruzam-se os dramas sociais e sentimentais de várias personagens.
«O Mundo» é o filme com o qual Jia Zhangke passou a integrar os quadros dos realizadores aprovados pelo governo da República Popular da China. As obras anteriores, onde se inclui «A Plataforma/Zhantai» (2000), que a Atalanta também estreou em Portugal, não puderam ser exibidas oficialmente no território.
Se em «Plataforma» o realizador “filmava” personagens a falarem por detrás de paredes durante minutos a fio, aqui, pelo menos, leva a câmara atrás deles, pelos corredores, como no plano inicial, onde um penso rápido foi a razão (poderia ter sido outra coisa qualquer) para um plano-sequência que nos apresenta os bastidores do Mundo e as suas personagens principais.
Ainda que dentro do sistema, o filme de Jia não se detém nas críticas. O “sistema” actual também aprecia alguma irreverência, desde que sob controle. “Brinca, mas não abuses, vá.” Em parte, «O Mundo» é um vídeo promocional ao parque temático onde a acção decorre — os números musicais assumem tal função; entre o separador e o comercial para TV —, mas também uma metáfora às particularidades da economia crescente da RPC.
As personagens são migrantes do interior (da província de Shanxi, como o realizador), que vêm para a capital, em busca de novas oportunidades. O retrato é um tanto ou quanto amargo; o novo capitalismo chinês está longe de se revelar um mar de rosas para todos. O “novo mundo” que procuram pode revelar-se uma desilusão e o parque é uma espécie de símbolo anti-emigração.
A metáfora mais curiosa (e divertida) é a afirmação de que na China se faz com a mesma facilidade imitações de roupa como do próprio mundo exterior. O paralelo é estabelecido com a personagem de Qun (Wang Yiqun), um “caso” (ou talvez não) de Taisheng, que cria roupa com base nos designs de revistas de moda. Porquê sair da China, se um mundo parecido e mais barato está a uma dúzia de quilómetros da capital?
Jia ilustra a China moderna com a presença intensa dos telemóveis e o “digital” — em certos contextos sinónimo do “moderno” — trespassa cada frame de filme. Digital é, desde logo, a “fotografia”, de Yu Lik-wai, realizador de «All Tomorrow's Parties» (2003) (1) (também digital, com Jia Zhangke como produtor associado) e os separadores animados (em Flash).
A fotografia, com base em vídeo de alta definição transcrito para película, tem bom aspecto, mas não deixa de apresentar as características negativas da fonte, como limitações a nível de contraste e profundidade. As animações em Flash são pobres e mal integradas no resto do filme, como os inserts de números musicais, ainda que tal seja intencional (intervalos de “realidade” na ficção).
É certo que se abordam temas importantes e relevantes no contexto da situação social e económica da China dos dias de hoje, mas essa relevância, por si só, não gera um bom filme. O subemprego da juventude é um tema socialmente relevante, mas um filme de três horas passado nas cozinhas de um qualquer McDonald's, tanto pode ser genial como uma perda de tempo monumental.
O estilo de Jia é de uma casualidade arthouse entediante, com planos que se prolongam bem para lá do necessário. A narrativa é entrecortada e desconexa, com quadros que poderiam ter sido improvisados minutos antes da rodagem.
Não há uma verdadeira evolução das personagens e do texto. Roger Ebert escreveu que “The World é sobre uma história que nunca começa realmente” e tem toda a razão (ainda que tenha gostado). O final, que impressionou uns e confundiu outros, pode também aferir-se como uma tentativa apressada de tentar dizer ainda qualquer coisa profunda e “poética”, deixando o espectador intrigado com o teor “enigmático” dos últimos diálogos.
(1) Falámos de «All Tomorrow's Parties» («Mingri Tianya») a propósito de Sitges 2003. |