Satsuki (Hidaka), de dez anos, e a irmã, a pequena Mei (Sakamoto), de quatro, mudam-se com o Pai (Itoi) para a nova casa no campo. O Pai trabalha na universidade, na cidade, mas a mãe (Shimamoto, a voz de Nausicaä e de Clarisse de «The Castle of Cagliostro») está doente no hospital e a demora em ter alta preocupa as meninas. Um dia, enquanto brinca sozinha no campo que circunda a casa, Mei depara com uma pequena criatura que, assim que se apercebe que foi detectada, imediatamente se torna invisível. Perseguindo o estranho ser e um amigo maiorzinho, Mei vai conhecer Totoro, um bicho grande e peludo, uma espécie de cruzamento entre um gato e um urso (e que faz uns bonecos de peluche muito engraçados).
Foi com grande prazer que pude finalmente rever «Tonari no Totoro», mais uma obra-prima de Miyazaki Hayao e o seu filme mais marcadamente “infantil”. Miyazaki tem tendência para criar histórias adequadas para um público da mesma idade das suas personagens centrais, revelando um enorme e inato talento para conseguir igualmente seduzir os mais velhos. Esse prazer pode-se consubstanciar num choque, a princípio inconsciente, ao ouvir a primeira linha de diálogo, proferida por Satsuki, que, desta vez, já não foi “paiêêê, cêê quéé umá bála?!” As edições do catálogo Ghibli em DVD de Hong Kong da IVL são uma verdadeira dádiva dos céus: boa qualidade de imagem e som (sem excluir alguns aspectos negativos em casos pontuais), versão original com legendas (inglês ou chinês), além de que são vendidas a um preço muito acessível (ainda que acima da média para Hong Kong, mas há que ter em conta que são DVD duplos).
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Custa acreditar que «Totoro» tenha sido estreado em sessão dupla com «Hotaru no Haka» [«Grave of the Fireflies»], de Takahata Isao, produzido paralelamente no Studio Ghibli. Havendo alguma dificuldade em financiar o projecto, pensou-se que as audiências garantidas do filme de Takahata (turmas escolares, já que se trata de um filme com relevo para a história japonesa do Século XX) poderiam contribuir para assegurar os resultados financeiros de «Totoro». Mas, tratando-se de dois filmes tão diferentes – o de Takahata é, pura e simplesmente, um dos filmes mais tristes e deprimentes jamais feitos, apesar de ser “desenhos animados” – seria inevitável que a apreciação de um e de outro dependesse de qual fosse apresentado primeiro. De acordo com o realizador de «Hotaru no Haka», as sessões funcionavam melhor quando o filme de Miyazaki ficava para o fim. Se se começasse por «Totoro», a audiência ficava sem vontade alguma de mergulhar na depressão do filme de Takahata, arruinando a boa disposição resultante desse filme.
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Nos anos 90, a distribuição de «Totoro» para o Ocidente – i.e., EUA – não foi vista com bons olhos devido ao choque provocado pelo retalho empreendido pelo distribuidor New World Pictures a «Kaze no Tani no Nausicaä» [Nausicaä of the Valley of the Winds] (1984). Como não poderia deixar de ser, os distribuidores americanos depararam com coisas que consideraram poder não ser entendidas pelas audiências americanas, desejando remover (para “melhorar” o filme, como é hábito) um par de cenas, incluindo aquela em que as meninas tomam banho com o pai. Mas, depois do caso «Warriors of the Wind» (nome da versão adulterada de «Nausicaä»), a política do estúdio japonês passou a ser a inclusão específica de cláusulas que protegessem a integridade das obras, na redacção dos contratos de distribuição. (E, ainda assim, a exploração do marketting associado aos filmes ficou de fora).
«Tonari no Totoro» contém uma narrativa simples, quase linear, onde o conflito é praticamente inexistente ou, pelo menos, insignificante. Não há “mal” em lado algum. Temos duas menininhas preocupadas com a mãe doente, no hospital, algumas birras e a mais pequena que se perde. É um filme sobretudo para desfrutar visualmente, acompanhando a visita guiada em que as manas são levadas por Totoro e pelos seus amigos, pelo bosque e pelos seus sítios secretos, a espera numa paragem de autocarro por um meio de transporte muito invulgar – peludo e com imensas pernas –, numa cena à chuva meio surreal. Em toda a sua simplicidade narrativa, a obra de Miyazaki consegue revelar-se emotiva em alguns momentos, constituindo um verdadeiro deleite para os sentidos. A animação é refinada e a “representação” das personagens é perfeita.
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Inspirado em imagens da própria infância de Miyazaki – cuja mãe esteve internada num hospital com tuberculose – e com a influência de obras como “Alice no País da Maravilhas” de Lewis Carroll (o gato, a invisibilidade das criaturas, a toca...), «Tonari no Totoro» é uma viagem deslumbrante ao mundo das crianças, onde o real por vezes se confunde com as memórias de sonhos a que nunca conseguiremos voltar. A atmosfera e a magia do filme é, em grande parte, enaltecida pela excelente música de Hisaishi Jo e há também que referir que as canções são mesmo muito bonitas (só é pena não estarem legendadas nesta edição).
A criatura que se tornou o símbolo do Studio Ghibli é um dos objectos de marketting mais rentáveis de sempre. Depois da estreia do filme – com resultados de bilheteira que não foram propriamente memoráveis – houve alguma resistência em permitir a criação e distribuição de bonecos de peluche, mas, quando tal finalmente sucedeu, no início dos anos 90, o sucesso de vendas foi esmagador e os resultados financeiros praticamente suficientes para sustentar o estúdio.
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Entretanto, os direitos para os filmes de Miyazaki estão adquiridos para Portugal pela New Age Entertainement, pelo que é uma questão de tempo até que tenhamos este e outros títulos nas suas versões originais e em versões originais dobradas em Portugal (“Ó pai, queres um caraméélo?”) Sendo um filme que pode (e deve) ser apreciado por crianças pequenas – ainda que fiquem confusas com algumas coisas – este é um caso em que a dobragem terá utilidade. Claro que os pais conscienciosos e interessados na evolução cultural dos seus filhos sugerir-lhe-ão trocar de versão assim que chegarem à idade em que sabem ler. Porque estamos perante um dos melhores filmes para crianças jamais feito e que merece ser apreciado com o menor número de alterações possível.
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