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Capa exterior e interior do DVD coreano de «Primavera Verão...».
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Um monge budista (Oh) vive com uma criança pequena (Seo) numa casa flutuante no meio de um lago. O monge educa o miúdo de forma rigorosa: quando ele maltrata pequenos animais, o mestre castiga-o de forma paralela. Cada estação que passa traz uma fase da vida do pupilo — acompanhamos a criança, o jovem, o adulto. Durante a adolescência, uma rapariga doente é colocada sob os cuidados do monge, quebrando a harmonia do local, assente numa bipolarização reconduzida, em última análise, ao princípio de Yin e Yang.
«Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera» marca, de certa forma, uma viragem na carreira do realizador sul-coreano Kim Ki-duk, depois de títulos caracterizados por uma forte violência psicológica, de onde se retêm personagens femininas fragilizadas, vítimas de abusos ou forçadas a submeterem-se física e emocionalmente. «Nappeum Nanja» [«Bad Guy»] (2001) tem como protagonista um "herói" desprezível que decide vingar-se de uma estudante, chantageando-a e levando-a à prostituição. «Suchwi-in Bulmyeong» [«Address Unknown»], do mesmo ano, segue personagens afectadas, de uma forma ou de outra, pela presença militar norte-americana na Coreia do Sul; uma delas é uma rapariga que mantém uma relação com um soltado com o único propósito de conseguir ser operada ao olho que perdeu em criança.
O penúltimo filme de Kim — ainda se ouvia falar dele e já o realizador apresentava «Samaria» (2004) em Berlim — assemelha-se a um processo de meditação. As portas abrem-se perante o espectador, à medida que as estações se sucedem e a personagem central cresce e amadurece. Com o crescimento vêm os erros, uns mais graves do que outros. O monge, mestre e figura paternal, tenta levá-lo para a via da rectidão moral, mas a natureza humana resiste. A presença feminina desperta os instintos carnais — será difícil falar em amor nesta sequência — e desvia o aprendiz do percurso que lhe foi traçado. Os caminhos e as portas são metáforas óbvias sobre as quais não valerá a pena discorrer muito por aqui, sendo sintomático que, a dada altura, o monge escreva em vários pedaços de papel a palavra “fechar” (o caracter chinês bì — 閉).
Há paralelos formais, fortes, e narrativos, casuais, com «Seom» [«The Isle»] (1999), um filme anterior do realizador a estrear em Portugal (cujo título nacional tem tendência a perder-se nos corredores escuros da nossa memória). O cenário é similar: um lago, com uma habitação flutuante. Se os filmes tivessem estreado consecutivamente seríamos levados a crer que Kim os tinha rodado em simultâneo, aproveitando o mesmo cenário e encolhendo substancialmente os orçamentos. A nível do argumento, o filme anterior coloca um fugitivo da lei numa estância de pesca, uma premissa que acabará por tocar ao de leve o desenvolvimento narrativo de «Primavera...». Aqui, o arranque é idílico, paradisíaco, casto; um velho, símbolo da sabedoria e uma criança, símbolo da inocência, mas também da ignorância e da crueldade primária do ser humano (ainda por confinar por processos de educação e socialização), movem-se numa realidade aparte, isolada dos vícios e distracções do mundo moderno, cumprindo rituais budistas de ascese e enriquecimento espiritual.
A narrativa é cíclica, como o próprio título indica e se quisermos extrair uma "mensagem" poderíamos optar pela ilustração da essência da natureza do ser humano; a sua maldade intrínseca, que resiste à iluminação do saber e da racionalidade.
É fácil reduzir o filme a um aforismo ou a uma lição de filosofia, mas o cinema de Kim — que interpreta ele mesmo a última encarnação do protagonista — nunca se revelou complexo em termos narrativos; é sobretudo uma obra visceral, com uma forte componente visual e estética, delineando uma simbologia clara e bem definida sobre a evolução do Homem enquanto ser moral e a procura da integração harmoniosa com o meio natural.
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