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Quem Lê Sobre Cinema em Portugal?
Cinema e crítica em Portugal, depois do fim da Premiere

A 17 de Setembro de 2007 foi anunciado o fim da revista Premiere, a única publicação portuguesa dedicada ao cinema na altura distribuída mensalmente nas bancas de jornais. A revista chegou ao mercado em 1999 e vendia cerca da 17 mil exemplares por número. O trabalho redactorial era assegurado por dois jornalistas – o director, José Vieira Mendes, e Luís Salvado – e um maquetista. Além de peças importadas e traduzidas, um conjunto diversificado de colaboradores preenchia as páginas da revista. Aí se incluíam, por exemplo, Francisco Ferreira, João Lopes, Maria do Carmo Piçarra, Cláudia Tomaz, Miguel Somsen ou Criswell (criado por Nuno Markl), cuja coluna era a secção favorita de grande parte dos leitores da revista.

Premiere 96
Capa da última Premiere portuguesa (Outubro de 2007).


No contexto editorial nacional de um país com 10 milhões de habitantes poderá parecer estranho que uma revista dedicada ao grande público consumidor de cinema não se consiga sustentar comercialmente. O mesmo seria válido em relação a uma publicação especializada em DVD, como a DVD-Review, extinta em Agosto de 2004.

Não se pode dizer simplesmente que hoje em dia “toda a gente consulta a informação na Internet”. O que “toda a gente” faz é usar o meio para reduzir substancialmente (ou anular de todo) as despesas com música e vídeo. A Internet também existe noutros países, onde se vai muito ao cinema e onde existem várias publicações dedicadas ao cinema e/ou ao vídeo. Em muitos desses países, a Internet é até mais rápida e com operadores menos complicados, que não empastelam o acesso aos consumidores com velocidades de acesso “light”, existindo maiores comunidades e conteúdos online, que concorrem e complementam os conteúdos disponíveis em papel.

Também é costume referir a limitação dos nossos hábitos de leitura, assinalando a existência de um grande número de publicações dedicadas ao futebol e a outros desportos menos expressivos ou revistas de “televisão” e de sociedade – uma área cujo publico-alvo será tendencialmente menos wired do que aquele que lê sobre cinema. Comparar o número de sites e blogues sobre cinema com o dos dedicados ao futebol demonstraria apenas a maior expressividade global de uma das áreas. Portugal poderá ser, hoje, também o país do mundo com mais jornais gratuitos concorrentes; outro indicador que temos hábitos de leitura (ou não-leitura) peculiares.

Portugal é particularmente massificado, i.e., um grosso da população, de consumidores, tende a concentrar os seus gostos, e os media tendem a reduzir a presença de tudo o que sai fora desse conjunto de conteúdos de popularidade garantida e a dar pouca importância a quem quer que difira do perfil médio testado e aprovado, fechando o ciclo de massificação cultural. Pode-se alegar que este cenário não é assim tão diferente do de outros países, mas o número relativamente reduzido da nossa população parece ser um entrave à diversidade e à existência de outros números de espectadores de cinema, sem falar em nichos de mercado; o culto de gostos que não sejam mainstream ou estejam fora do conceito de cinema de autor que tem por referência un certain cinema français, não tem expressão comercial.

Se atentarmos a dados estatísticos do cinema europeu, constatamos que Portugal, por comparação com países com alguma proximidade cultural, como Espanha, Itália ou França, é um pequeno ou moderado consumidor de cinema. Por exemplo, temos um quarto da população de Espanha mas por cá vendem-se apenas um sétimo dos bilhetes. Tal como a Espanha, o Reino Unido e a França têm taxas de frequência a caminho dos 3 bilhetes per capita por ano, enquanto em Portugal, cada cidadão, em média, só foi ao cinema 1, 63 vezes em 2005. No entanto, se na Espanha havia um ecrã para cada 9 779 habitantes, um número muito inferior ao de Portugal com 16 874, neste âmbito não estamos longe dos grandes consumidores de cinema da Europa – França (11 565), Itália (15 409) ou Alemanha (16 875).

Tabela comparativa cinema na europa

Não tenho dados oficiais no que toca a publicações dedicadas à 7ª Arte nos vários países da Europa, mas em relação ao Reino Unido, a Wikipedia refere uma dúzia, onde se incluem a Sight and Sound, a Empire, a Film Review e a Total Film. Na França temos os Cahiers du Cinema, a Positif, com uma perspectiva mais “séria” do cinema, e a Mad Movies dedicada ao fantástico, mas existem, entre outras, a Ciné Live e, claro, a Première (por enquanto?).

Em Espanha, há a Fotogramas, a Cinemanía (as duas mais populares), Imágenes de Actualidad, Dirigido e a versão local dos Cahiers du Cinema; Maverick, Acción, Cine y Video; com menos periodicidade, Nosferatu, Casablanca, Archivos de la Filmoteca e Academia. E ainda a Cine Asia (bimensal). Dá que pensar?

Premiere com gajas
Capas com meninas sensuais.
A Eslovénia parece ser um país com o qual melhor nos podemos comparar, ainda que seja previsível que num inquérito de rua muitos portugueses respondessem de forma errada em relação à sua integração ou não na UE. O governo e as populações também se entusiasmam muito quando chegam ao topo de um qualquer índice europeu (de e-government por exemplo), como se isso alterasse a sua (nossa) baixa expressividade cultural e económica no grande quadro europeu. Na Eslovénia (2 milhões de habitantes) existem três publicações dedicadas ao cinema: Ekran (bi-mensal), Premiera (quinzenal, gratuita) e Kino! (de 4 em 4 meses).

É claro que Portugal não é um bom mercado para o cinema nem para revistas “específicas”. No entanto, o caso da Premiere, de acordo com o texto do editor José Vieira Mendes, publicado no blog da revista 1, a extinção não se prendeu directamente com as vendas ou com a viabilidade financeira do projecto. Era uma estrutura leve, de custos controlados. A revista tinha um preço de capa baixo, mas compensava vendendo bem, tendo em conta a dimensão do nosso mercado.

O proprietário do título, o grupo francês Hachette, rebaptizado Lagardère Global Media, decidiu deixar de operar em Portugal, optando por vender alguns títulos a outra editora, sem incluir a Premiere. Aparentemente, porque uma revista “pequena”, lá em Portugal, não aquece nem arrefece. Se as vendas fossem muito superiores – com números como os que encontramos em países onde se lê muito – a decisão poderia ser outra, ou poderia levar a propostas irrecusáveis por parte de outras editoras.

Fui colaborador da Premiere durante 13 números, até Outubro de 2005, quase dois anos atrás. Tinha uma página que falava sobre cinema asiático na secção de DVDs. É um tipo de trabalho que aprecio – não muito diverso daquele que contribuía para a DVD-Review ou do que iniciei recentemente na Hype –, pois tinha liberdade relativa para escolher os filmes sobre os quais escrevia. A colaboração terminou porque, ao fim de um ano, me pareceu que as minhas capacidades e afinidades não estavam na melhor sintonia com as definições editoriais. De qualquer forma, gostei de contribuir para o conteúdo da revista, ainda que de forma limitada e modesta – uma insignificante página sobre cinema fora do circuito, longe dos interesses da maioria dos leitores.

Premiere com gajos
Capas com rapazes bem-parecidos (dizem).
Como consumidor, não me considerava parte do público-alvo da revista, e deprimia-me um pouco que necessitasse de actrizes em poses insinuantes, roupas justas e reduzidas, nas capas e em peças assumidamente ligeiras, com pouca substância 2. Porque não usar a imagem feminina (ocasionalmente era um senhor bem-parecido) para vender cinema, se o mesmo se faz para vender carros e se há uma revista de telemóveis que faz sempre capa com uma modelo anónima? Infelizmente, isto parece denotar que o consumidor português tende a ser fortemente delimitado pelo género. As mulheres não compram telemóveis, carros ou bilhetes de cinema. São os namorados ou maridos que pagam.

Não pretendo passar-me por “analista de mercado” e tecer considerandos sobre o que faria a revista “melhor”. Quanto muito poderia delinear o plano para a minha revista perfeita, a qual nunca seria suportada por nenhuma editora gerida por pessoas mentalmente sãs, e que não venderia mais que um punhado de exemplares. Também não está em causa, nesta sede, apontar defeitos à revista, pois não foram os “defeitos” que levaram ao seu fim, mas tão só uma decisão editorial. Mesmo perante aquilo que não gostava, não posso deixar de considerá-la uma revista boa ou adequada para o nosso mercado. Uma revista com uma perspectiva de grande público e que, com essa base, nunca deveria ter a sua continuidade em causa. Se alguma coisa estava (e está) mal seria a falta de meios dedicados ao cinema “alternativo”. Mas para que público?

O público da revista não se reduzia ao dos gostos massificados; existia espaço para outras propostas, como o cinema de autor, ou fora dos circuitos habituais (como o asiático, por exemplo). Num dos inúmeros comentários de apoio no blog da Premiere, um leitor refere, curiosamente, que o encerramento seria reflexo da cultura-pipoca, do "entretenimento descartável". Há uma ironia aqui (e penso que não foi intencional), pois a revista era, em muito grande medida, sobre o cinema-pipoca, nunca tendo pretendido ser porta-estandarte do cinema de autor ou alternativo “contra a massificação do cinema”. Tal era assumido nas capas (com actrizes, talentosas ou não, mas que estavam na capa pelo aspecto e pelo que vestiam ou não vestiam) e na própria promoção, nomeadamente no clip onde se agradecia “aos índios e aos cowboys, aos fabricantes de pipocas”, etc.

Premiere com gajos
Capas com super-heróis.
A questão é que a revista devia ser intocável, sólida, não porque lutava contra o sistema, mas porque era uma revista do sistema. Nada de errado quanto a isso. Mas é esse também o maior factor de preocupação; que imprensa de cinema pode existir em Portugal se uma revista "comercial" não sobrevive no mercado?

Aquilo que é ainda preciso reconhecer como uma perda é o próprio conteúdo crítico da Premiere, assinado por uma grande diversidade de colaboradores, que permitiam apresentar uma rara (única) amplitude de perspectivas sobre o cinema, ao contrário da tendencial unicidade crítica de jornais e semanários.

As críticas a filmes em estreia nas salas eram em número reduzido, mas trabalhar com planos de distribuição flutuantes sem a antecedência necessária a uma revista mensal é um entrave incontornável. Uma revista que saia no dia 1 com críticas a todos os filmes que estreiam nesse mês requer que os distribuidores assegurem um mapa de estreias com um mínimo de flutuações e que mostrem os filmes atempadamente à imprensa. Mas, em muitos casos, fazem-no alguns dias antes da data de estreia.

A crítica de Premiere iria mais ao encontro do espectador médio, de cinema comercial, e seria menos constrangida pelos conceitos de “comercial” ou de “arte”, que por vezes resultam em quadros de “estrelas” rígidos e, ocasionalmente, curiosos. Por exemplo, um filme comercialão, com classificações médias no quadro, pode, por vezes, fazer-nos fazer sentir que a crítica gostou imenso do filme (e os textos, por vezes, sugerem-no), mas que não se “pode” ir além das três estrelas disponíveis para o cinema comercial. De igual modo, alguns filmes de autor com três estrelas parecem reflectir que o crítico não achou o filme nada de especial (e os textos, por vezes, sugerem-no), mas é deste ou daquele realizador. Ou serei demasiado cínico? Em todo o caso, isto remete para outra questão que é: as estrelas deviam ser proibidas ou remetidas a um quadro difícil de descodificar (impresso invertido, demasiado escuro, etc.), escondido algures na penúltima página da publicação, junto à publicidade a novos toques polifónicos.


Estamos agora mais longe de um panorama editorial “equilibrado”, no que toca a publicações sobre cinema em Portugal. Um país com a nossa dimensão e frequência de salas, visto a uma certa distância, poderia ter três ou quatro revistas de cinema. Mas, neste momento, não tem nenhuma nas bancas. A Premiere deixou um espaço vazio e parece natural que já exista alguém a pensar em que moldes preenchê-lo. E que tal um nome português, para variar?

Agradecimentos a Jordi Codó (Espanha), Blaž Križnik e Gorazd Trušnovec (Eslovénia)
pelas informações sobre o panorama editorial dos respectivos países.

19/10/07

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(1) Nota no blog da Premiere, agora Deuxieme. Já agora, uma referência também para o blog de Nuno Markl, Há Vida em Markl

(2) O último número a conter textos meus apresentava Jessica Alba na capa, a pretexto de um dossier sobre o “poder latino” em Hollywood. A actriz estava em bikini e a sugerir um abaixar da calcinha com o polegar.

Por outro lado, sendo compreensível que nos lembremos da utilização da imagem feminina para atrair leitores (de cinema?), cumpre frisar que tal não era uma espécie de norma aplicável a todas as capas, talvez nem sequer à maioria. Por exemplo, pegando em 10 números, do 64 ao 73, encontramos quatro meninas nas capas (Kidman, Johansson, Jolie e Alba) dois homens (DiCaprio e Law), um Darth Vader e um Batman, mais uma partilhada por Catherine Zeta-Jones e Antonio Banderas. A capa com o vilão de «Star Wars», no entanto, foi retemperada com uma imagem insinuante de Scarlet Johansson (de novo) num canto.

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