Shurayuki Hime [Lady Snowblood]
Lady Snowblood: Blizzard from the Netherworld
修羅雪姫
Realizado por Fujita Toshiya
Japão, 1973 Cor – 97 min. Anamórfico.
Com: Kaji Meiko, Kurosawa Toshio, Akaza Miyoko, Daimon Masaaki, Nakaya Noboru, Nakada Yoshiko, Negishi Akemi, Nakahara Sanae, Komatsu Hosei, Takagi Hitoshi
drama horror crime samurai artes-marciais
Capa DVD
O Imperador Meiji iniciou reformas para aproximar o Japão das potências ocidentais, económica, industrial e militarmente. Uma das medidas foi o recrutamento compulsivo para a criação de um exército nacional, ao qual foi associada a expressão “Imposto de Sangue” (Ketsuzei) [1]. 1873, um grupo de criminosos (três homens e uma mulher) aproveita o período de agitação social para ganhar dinheiro à custa da ignorância dos camponeses. Um professor e a sua mulher têm o infortúnio de se cruzarem com eles. O homem é barbaramente assassinado, a mulher é violentada. 1874, Ano 7 na Era Meiji. Uma criança nasce na prisão. Falecendo pouco depois de dar à luz, Kashima Sayo (Azaka) deixa um legado de vingança à filha Yuki. 1894, o caminho de violência e vingança de Kashima Yuki (Kaji) começa a assumir contornos de lenda quando Ashio Ryurei (Kurosawa), inicia o relato das suas histórias no “Jornal do Povo”, sob o título "Shurayuki Hime".

Hoje, «Lady Snowblood» poderá ser dificilmente dissociável do mega-popular «Kill Bill», uma vez que é uma das muitas obras “de culto” onde Quentin Tarantino foi recolher elementos para reciclagem e integração no seu filme, incluindo a canção “Shura no Hana”, interpretada pela actriz principal Kaji Meiko. A temática da vingança tem sido muito popular no cinema de acção, mas deixou mais marcas no exploitation, onde se vai mais longe na representação gráfica da violência e, por vezes, do sexo. Nos anos 70, o tópico conheceu vários desenvolvimentos no feminino, a Oriente e a Ocidente — onde, entre os mais célebres se encontram o sueco «Thriller/They Call Her One Eye» (1974) [2] ou «Last House on the Left» (1973) e «I Spit on Your Grave» (1978), dos Estados Unidos. Estes títulos normalmente misturavam, com pouca subtileza, a concepção de um produto destinado a uma audiência masculina à procura de emoções fortes, com um pretenso sentimento de justiça feminista, em revolta contra os abusos de que as protagonistas são vítimas. Boa intenções, nem por isso; o público queria mesmo ver sexo e violência a rodos.

Sayo jura vingar-se dos assassinos do marido, mas a prisão impede-a de concluir o objectivo.

Shuruyuki Hime [3] não é uma personagem tipo, no contexto dos títulos referidos anteriormente. É mais uma vingadora substituta, que empreende uma tarefa que a mãe não pôde terminar, do que alguém que viveu e sentiu algo directamente na pele. Yuki herdou o desejo de vingança. A mãe preparou a sua educação com os melhores mestres com o único intuito de que a sua filha fosse capaz de se tornar uma assassina, perseguindo um a um aqueles que mataram o pai e violentaram e arruinaram a vida da mãe, bem como todos os que se metam no seu caminho ou cuja eliminação possa ser conveniente por servir de moeda de troca, por informação que a venha a colocar na pista certa. Nestes termos, o filme consegue gerar maior reacção emocional perante os actos da sua protagonista. Ela não é apenas alguém que faz justiça pelas próprias mãos — qual Charles Bronson no feminino [4] —, mas sim uma mulher que tem a morte como modo de vida e razão de ser.

Yuki à espera de um alvo. À direita, Ashio Ryurei começa a escrever a história de Lady Snowblood.

A violência em «Lady Snowblood» é típica de um filme de samurais dos anos 70. É frequente, gráfica e sangrenta. É realista, por certo prisma; quando se usam espadas afiadas contra um inimigo há desmembramentos, decapitações e golfadas de sangue. Já não o será quando se favorece o pictórico, recorrendo-se a sangue que parece tinta (vermelho bem berrante) ou que ultrapassa em quantidade a capacidade normal de armazenamento por parte de um ser humano, como na cena em que um cadáver dá cor a uma vasta área de água, numa praia à beira-mar.

Podemos estabelecer uma linha de separação quanto ao modo como o cinema tem ilustrado o tópico da vingança em termos de moralidade, no exploitation e no cinema mainstream, dito sério. O público gosta, e os estúdios sabem-no, de um herói que faz justiça pelas próprias mãos e elimina os criminosos que a polícia não consegue apanhar ou que o poder judicial não consegue (por falta de meios) ou não quer (por ser corrupto) condenar. A vingança é justificada “moralmente”. O criminoso cometeu actos terríveis, violentos, tem uma atitude de desafio às normas sociais e está para lá do arrependimento. Isto é essencial para transformar o "herói" vigilante num justiceiro moralmente íntegro e para que o público tome o material como "entretenimento" e "acção" (ao invés da representação de execuções extra-judiciais). Mas tal acaba por funcionar como uma verdadeira barreira narrativa. O constrangimento é óbvio: produzem-se filmes en masse com base na fórmula “criminoso mata mulher/namorada/família do herói, herói persegue criminoso e elimina todos os que se metem no seu caminho”. Há algumas variantes. Nos cruéis anos 70, o protagonista não teria muito pejo em espetar uma bala no centro da testa do criminoso que lhe arruinou a vida; pós-anos 90 do politicamente correcto, o standard é engendrar-se uma razão ou um acto fortuito que obrigue o dedo do protagonista a puxar o gatilho ou a opção, mais covarde, de usar um secundário, fazendo o herói vingar-se by proxy. E o pobre secundário, naturalmente, paga de imediato pelo atrevimento, que isenta o protagonista de qualquer culpa, sendo castigado por outra bala (ou o acto foi simplesmente executado antes do estertor final).

O parágrafo anterior procura ilustrar como o chamado exploitation consegue ser mais honesto do que o mainstream dos nossos dias. O exploitation assume a violência (e/ou o sexo) como "puro" entretenimento, sem precisar de engendrar um final contra-natura para justificar tudo moralmente, anulando a razão de ser do filme que é, afinal de contas, usar esses elementos gráficos ou chocantes como "espectáculo".

«Lady Snowblood» está longe de ser um exploitation forte e difícil de digerir, por comparação com outros que recorrem a frequente violência sexual como desculpa para mostrar mulher nuas, apelando, simultaneamente, a um certo sadismo das audiências (masculinas). Em certa medida, talvez até fosse preferível evitar apor esse rótulo a um filme que se leva bastante a sério e não descura a dimensão dramática em redor das personagens. Yuki é, afinal, uma personagem trágica, dominada por um objectivo de vida que a consome e que a precede. No meio de geisers de sangue que cruzam o enquadramento scope, voga uma alma torturada à procura de uma saída. A tortura emocional da personagem nasce da tortura física e emocional da mãe, que se tornou promíscua na prisão, consciente da incapacidade para completar a sua vingança, esperando poder vir a ter um filho que o fizesse por ela. O destino parecia continuar contra si ao determinar que Sayo desse à luz uma menina.

A narrativa só é esquematizada na sua estrutura, pois o argumento de Koike Kazuo [5] e Kamimura Kazuo está longe de seguir convenções ou de meramente ligar situações em que a protagonista enfrenta os seus inimigos, um atrás do outro. As coisas nunca correm exactamente como nós estaríamos à espera, como seria lógico num filme desta natureza e a própria heroína parece decepcionada com as atitudes de alguns dos seus oponentes. O clímax é exemplo disso, evitando-se um embate tradicional entre a protagonista e o seu inimigo mais forte e mais inteligente. Afinal não é isso que o público espera? Uma escalada de emoções, assente na escalada de acção, violência e coreografias de combate?

4

[1] A expressão, supostamente usada no Ocidente, visava simbolizar o serviço prestado à nação (e, mais literalmente, o sangue derramado pelo país, em situação de guerra) pelos cidadãos. Mas o povo, menos literato e pouco dado a metáforas, tomou a expressão literalmente, e começou a circular o rumor de que agentes do governo andavam a tentar sugar o sangue do povo para o vender aos estrangeiros.

[2] A protagonista de «Thriller» foi usada por Tarantino para compor a personagem Elle Driver, tal como Shurayuki serviu para construir a O-Ren Ishii de Lucy Liu em «Kill Bill»

[3] De acordo com as notas no DVD: "shura" é um termo budista que designa o Inferno ou o Submundo (a tradução usa a expressão "Netherworld"). "Yuki" (neve) e "hime" (princesa) são termos mais comuns. O título é também um trocadilho com "Shirayuki Hime", o título japonês da "Branca de Neve" dos Irmãos Grimm.

Legendagem progressiva (passe com o rato sobre a imagem).
[4] Ainda que formalmente sejam géneros diversos, «Death Wish» (1974), que daria origem a várias sequelas, é também um produto desta época e do desejo de explorar a vingança explosiva do "herói", procurando corrigir a impotência da Lei.

[5] Koike é um conhecido escritor de manga, sendo autor de títulos como "Crying Freeman" e "Lone Wolf and Cub/Baby Cart". As suas obras foram adaptadas numerosas vezes para o cinema.

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DVD AnimeEigo (R1), anamórfico, som japonês 2.0. Notas e trailers para outros títulos do distribuidor (dois da série Lone Wolf, dois da série Zatoichi).

A julgar por esta edição e pelos comentários frequentes a outras, a AnimeEigo produz uns belos DVDs. O trabalho de restauro e/ou remasterização dos materiais originais é notório, ainda que a transferência não seja exactamente perfeita (poderia ter um pouco mais de definição). O mais importante é a atitude da editora que aponta para um público inteligente, interessado e maduro. Isso é notório em dois aspectos deste DVD: a legendagem e as notas históricas. O texto traça uma resenha histórica do período em que a acção de passa, integrando alguns momentos da acção no contexto da história japonesa. Talvez fosse mais agradável ter o texto na forma de um livrete, mas, convenhamos que tal seria mais caro. A legendagem é cuidada, mas, quanto a mim, vai-se longe demais, por força de se querer ser rigoroso. Há duas opções, mas a segunda, anunciada como "básica" traduz tudo menos os diálogos, de modo que é útil apenas para quem entender japonês. A faixa principal traduz diálogos, todo o texto que surge no ecrã e ainda fornece alguma informação adicional, a título de "notas de rodapé".

O problema com a legendagem é o abuso com as cores. Desde logo, a mania americana de preferir o amarelo ao branco (ainda por cima, não é um amarelo ligeiro, mas carregado e vivo, logo pouco neutro). Depois usam-se outras cores, como o vermelho para as canções e o branco para traduzir texto e elementos visuais e alternam-se cores quando há frases consecutivas proferidas por diferentes personagens (amarelo, verde, amarelo,...). O timing também é um pouco desconcertante, devido à opção de manter uma linha de diálogo mesmo quando entra uma linha nova. Tudo isto resulta numa série de "flashes" visuais que se poderiam evitar. Algo que dificilmente se compreende é o recurso ao itálico durante longos flashbacks.

A tradução em si denota grande qualidade e temos de apreciar o cuidado com que se legenda, por exemplo, um texto escrito numa folha de papel, caracter a caracter (vd. imagens acima, junto às notas), e se dão explicações adicionais.

publicado online em 1/8/04

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