Imprint
Masters of Horror: Imprint
マスターズ・オブ・ホラー インプリント (masutazu・obu・hora inpurinto) 1
Realizado por Miike Takashi
EUA/Japão, 2006 Cor – 63 min.
Com: Kudoh Youki, Michie, Negishi Toshie, Billy Drago, Imai Kumiko, Kinoshita Tokitoshi, Ichino Seriyu, Iwai Shimako, Uehara Risa, Egushi Noriko, Megumu Takada, Yamada Mame
drama horror
Capa DVD
No Japão, na Era Meiji, segunda metade do Século XIX, Christopher (Drago), um jornalista americano, é conduzido por barco até uma ilha sombria, onde espera encontrar Komomo (Michie), a jovem que deixou anos atrás, com a promessa do regresso. Komomo estaria agora num bordel, mas ninguém parece ter ouvido falar dela naquele local. Devido ao tardio da hora e ao cenário não recomendar passeios nocturnos, o homem acaba por passar a noite no bordel, na companhia de uma prostituta (Kudoh) que se senta sempre em cantos mal iluminados. A prostituta, que permanecerá sem nome, revela ter conhecido o amor de Christopher e conta-lhe histórias do passado. Mas poderá ele confiar nela?

Para o final da primeira época dos “Masters of Horror”, o criador e produtor executivo Mick Garris convidou o realizador japonês Miike Takashi, conhecido no Ocidente por um punhado de títulos “extremos” e que geraram um culto forte, como «Ichi the Killer», «Audition» ou a trilogia «Dead or Alive». Miike não é um cineasta com uma carreira centrada no género horror – seja “tradicional” ou não – e raramente se satisfaz em seguir regras e estruturas narrativas comummente associadas aos cinema de género. No entanto, «Audition», «Gozu» ou o mais facilmente rotulável como “filme de terror” «Uma Chamada Perdida», poderiam sugerir fortemente o convite para a realização de um episódio desta série. Mas ao convite subjaz inegavelmente a força do nome de Miike entre nós, disseminado em festivais de cinema e no mercado DVD de importação, e o facto de ser para lá de cool, não só aos olhos de cinéfilos com apetência pelo cinema mais “forte”, como por cineastas ocidentais, eles mesmos interessados no poder choque do meio, como Tarantino, Del Toro ou Eli Roth.

Imprint” seria assim o 13º episódio a ser exibido nos EUA, no canal Showtime, distribuído em sinal fechado via cabo, o que permite, em teoria, a exibição de filmes sem qualquer forma de censura (a uma grande distância do que sucede nos canais terrestres, de sinal aberto, que passam versões familiares de todos os filmes, com cenas cortadas e diálogos alternativos, substituindo-se inclusive os mais ligeiros palavrões). Este era, aliás, um dos pilares da série: liberdade (quase) total.

Billy Drago Kudoh Youki
Christopher passa uma noite com uma prostituta que lhe conta histórias de Komomo, a mulher que procura.

O episódio tornou-se entretanto célebre por não ter sido exibido na data prevista, por ter sido considerado “forte demais”. Miike e a co-produtora japonesa, Kadokawa Pictures, terão aligeirado o filme até certo ponto, mas os próprios produtores americanos decidiram que cortes não eram solução, nem faziam sentido, tendo em conta o conceito de “liberdade” que paira sobre o projecto, preferindo manter “Imprint” integral em DVD e nos vários festivais por onde tem passado. O próprio Miike, numa entrevista ao Japan Times, afirmou que “em termos comerciais teria feito mais sentido fazer alguns cortes.” Toda a aura do “extremo” contribuiu, naturalmente, para que o episódio fosse um dos mais populares desta primeira época dos “Masters of Horror”.

E terá razão de ser, todo o burburinho em redor de “Imprint”? Bom, quem não conhece os filmes mais “fortes” de Miike, como «Ichi», poderá ficar surpreendido; os outros talvez não. “Imprint”, que Garris considerou ser o “filme mais perturbador” que já viu, tem, sem dúvida, capacidade para chocar ou provocar a indisposição em algumas pessoas da audiência, com a sua mistura de tortura lenta e dolorosa, fetos abortados e inglês fonético.

Iwai Shimako Tecidos
Iwai Shimako, a autora do livro original, "Botukee Kiyoutee"; uma torturadora com notório prazer no seu trabalho.

A opção por filmar em inglês tem óbvias consequências no modo como apreciamos o filme, que está para lá da estranheza da língua ser banal no Japão Meiji, mas que se prende com a própria naturalidade (ou falta dela) das interpretações, que não deixa de contaminar o próprio Billy Drago, que precisaria de um tipo de direcção mais explícita e directa. No entanto, esse factor já pouco interfere quando entramos nas cenas mais “coloridas”, como a longa tortura a que uma personagem é submetida, e, em revisões posteriores, o inglês “quebrado” até transpira um certo encanto, sobretudo quando permitimos que se associe a uma realidade própria, quase alternativa, que tem também reflexo, por exemplo, no guarda-roupa espampanante, quase punk, e nas próprias personagens das prostitutas, longe do cliché da geisha sensível, culta e cuidadosamente maquilhada.

Mick Garris sobre "Imprint"

Em Setembro de 2007, durante o MOTELx, tive a oportunidade de conversar brevemente com Mick Garris, o criador dos “Masters of Horror”, a propósito de “Imprint”, depois de ter sido apresentado pelo co-director do festival, João Monteiro, como o responsável pela maior parte da legendagem dos episódios projectados e por alguns textos distribuídos no São Jorge, incluindo “Valerie on the Stairs”, do próprio Garris, e este “Imprint”.

Mick Garris esclareceu que as razões para a não transmissão do episódio não se prenderam com os fetos rolantes (como presumi no texto), mas com a sequência de tortura que, segundo ele, era mais longa numa primeira montagem.

Perguntei também se não se ponderou rodar o filme em japonês. Resposta: emitir um episódio legendado nunca foi sequer considerado, dada a falta de hábito e a resistência do público americano a um processo banal entre nós (irónico, tendo em conta que o filme acabou por não ser exibido).

O realizador de “Chocolate” concorda que o “inglês quebrado” detrai do filme e que, por essa razão, para o contributo japonês da terceira série foram escolhidos actores com bom domínio da língua.

Imprint” foi adaptado por Tengan Daisuke, argumentista que co-escreveu os guiões dos últimos filmes do pai, Imamura Shohei, e que já tinha trabalhado com Miike em «Audition». A obra original foi escrita por Iwai Shimako, que sugeriu tê-la concebido a partir de ressentimentos contra uma sociedade dominada pelos homens. Esta “liberação” feminina é reflectida num texto onde uma personagem masculina se dilui e perde num cenário quase inteiramente povoado por mulheres. E ao invés de cenas, sempre tão “controversas”, em que uma mulher é longamente torturada por homens, agora temos cenas em que uma mulher é longamente torturada por mulheres. Iwai teve a honra de ser convidada para o papel de puta torturadora, um trabalho que cumpriu com satisfação (olhem para o seu rosto, ela não é actriz, está mesmo a divertir-se), e que conduz a uma sequência capaz de fazer contorcer os espectadores mais sensíveis (e alguns dos mais insensíveis). O cinema de horror estava mesmo a precisar de mais alguma sensibilidade feminina.

Violência gráfica e tortura também existe noutros episódios desta série, mas o público do cinema de terror digere bem o gore standard a que está habituado, como decapitações e desmembramentos, sobretudo quando filmado e montado das formas previsíveis. Em todo o caso, mais do que a tortura, terão sido provavelmente os fetos rolantes – carinhosamente baptizados com nomes de assistentes de produção – que levaram a Showtime e optar por negar a transmissão, arruinando, logo na primeira época, a piada de ter séries de 13 episódios.

Independentemente do cariz mais ou menos “extremo” do episódio, o texto tem mérito e ainda reserva algumas surpresas fortes para os momentos finais. Apesar de estarmos habituados e enjoados de tantos twists que povoam thrillers e até comédias românticas, duvido seriamente da palavra de alguém que diga “ah, estava mesmo à espera de ver aquilo acontecer”.

Este texto foi distribuído originalmente como folha de sala do MOTELx, Festival Internacional de Cinema de Terror de Lisboa. 2

Michie
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1O título japonês surge também na seguinte forma mais longa: マスターズ・オブ・ホラー インプリント ~ ぼっけえ、きょうてえ, sendo agregado, no final (depois de ~), o nome do livro de Iwai Shimako, onde o filme foi baseado ("Botukee Kiyoutee").

2 Devido a um lapso de origem informática, a folha foi distribuída com a assinatura errada.

PiFan 2006. MOTELx 2007. Disponível em vários territórios sob a chancela da Anchor Bay. Os direitos portugueses da série pertencem à Cinema Novo, mas não houve edição nacional até ao momento.

publicado online em 30/10/07

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