Tin Haa Mou Soeng/Chinese Odyssey 2002
天下無雙 (tiān xià wú shuāng)
Realizado por Jeff Lau Chun-wai
Hong Kong 2002 Cor – 97 min.
Com: Tony Leung Chiu-wai, Faye Wong [Wang Fei], Vicky Zhao Wei, Chang Chen, Athena Chu Yan, Rebecca Pan Dihua, Ning Jing, Eric Kot Man-fai, Roy Cheung Yiu-yeung
comédia romance wuxia artes-marciais
DVD
China, Dinastia Ming. O imperador Ko (Chang) e a princesa Wushuang (Wong) vivem aborrecidos com a vida no palácio, onde são rigorosamente controlados pela Rainha Mãe (Pan). Planeiam fugas constantes, mas a princesa acaba por ser mais bem sucedida, partindo sozinha em busca de aventura, vestida em trajes masculinos. Li Yilong (Leung), também conhecido por “Bully the Kid” (ou algo como “pequeno déspota”, no original), abandona a sua aldeia – onde é genericamente desprezado, devido ao seu mau feitio –, e vagueia pelo “jianhu”. Fénix (Zhao) gere o restaurante da família, farto de clientela, pelo menos enquanto Yilong se mantém à distância. Wushuang chega à aldeia e torna-se bom “amigo” de Yilong, o qual sente por "ele" uma atracção que julga atribuir aos sentimentos captados da irmã, com a qual partilha um forte laço emocional. Gera-se um emaranhado triângulo sentimental, com confusão de géneros à mistura, até que um novo vértice se adiciona com a entrada em cena do imperador, desejoso de expressar toda a sua criatividade.

Tal como «The Eagle Shooting Heroes: Dong Cheng Xi Jiu» (1993), «Chinese Odyssey 2002» (o título inglês cola-se a dois filmes da mesma equipa, interpretados por Stephen Chow Sing-chi) é uma produção da Jet Tone de Wong Kar-wai, tratando-se igualmente de um filme ligeiro, destinado a uma estreia no ano novo chinês, e que bebe substancialmente da obra de Wong, sobretudo do seu épico wuxia «Dung Che Sai Duk/Ashes of Time» (1994), de onde também se apropria a música original. Wong não tem qualquer problema em rir-se de si mesmo, subvertendo pelo humor as temáticas que explora de modo sério nos seus multipremiados filmes, especialmente porque é um método barato e eficaz de injectar dinheiro na produtora (vídeos musicais, publicidade e filmes de produção rápida e baixo orçamento tem sido um meio de financiar os projectos mais ambiciosos, sem guião e com prazos e orçamentos previstos que já ninguém deve levar a sério).

Wong Leung Zhao
Wong (a princesa), Leung (Yilong) e Zhao (Fenix).
«Eagle Shooting Heroes», também realizado por Jeff Lau, tem um humor slapstick extremado que por aqui passa só muito ligeiramente, além de estar recheado de aparatosas – e bem tolas! – cenas de acção. «Chinese Odyssey 2002» é um filme bem mais calmo e com outros valores de produção, o que é notório a nível do guarda-roupa e da fotografia, se bem que esteja a fazer o julgamento com base numa edição em DVD de qualidade (muito) limitada do filme mais antigo. O tom aqui não é apenas de comédia, elemento esse que se vai diluindo à medida que nos aproximamos do final e do território do drama romântico mais convencional. Se há indústria de cinema onde se consegue misturar eficazmente comédia slapstick, drama e artes marciais, essa indústria é certamente a de Hong Kong, apesar dos inúmeros exemplos onde o cozinhado sai esturrado. Este filme não será o melhor exemplo da mélange de géneros, mas também não é certamente o pior: a comédia tem momentos inspirados, as canções são divertidas – mas as tradução das letras soam muito artificiais –, tal como as coreografias anacrónicas, a decalcar alguns ícones contemporâneos. Sendo óbvio que os cineastas não estavam a pensar em produzir um filme "importante", nem sequer um grande filme, mas apenas um entretenimento ligeiro para o ano novo, a melhor ou pior apreciação de «Chinese Odyssey 2002» dependerá da tolerância do espectador ao tipo de humor presente e da aceitação da mudança de registo para o final, quando casalinhos se ameaçam formar.

Wong
Faye Wong, num disfarce masculino muito convincente.
O facto do slapstick se ir diluindo lentamente numa tépida poça melodramática, sem que tal nos choque demasiado, não implica que «Chinese Odyssey 2002» seja um filme plenamente bem sucedido. A arrumação das relações sentimentais recorre a um tom demasiado sério, pelo qual se envereda quase de um momento para o outro, acabando por criar uma certa distanciação com o material, como se estivéssemos a ver uma série de TV e, de súbito, passássemos do episódio introdutório, para o último, com as personagens mudadas, cenários diferentes, etc. Por outro lado, há um aspecto em que a coerência é intocável: tanto no humor como no drama, Lau continua a predar as temáticas de Wong Kar-wai, nomeadamente no modo como as personagens lamentam o passado desperdiçado e suspiram por uma nova oportunidade, ou como se começam a tornar no "outro", enquanto suspiram pela sua ausência (recorde-se que Wong e Leung contracenam também no popular «Chungking Express», de 1994, num registo completamente diverso).

O título original (tianxia wushuang), que, num nível de tradução, significará "sem rivais no mundo", tem diversas implicações no conjunto narrativo. Por um lado, refere-se a um par de anéis que assumem um papel importante na parte final do filme, confirmando o "destino" de duas personagens, por outro, os dois últimos caracteres formam o nome da princesa (Wushuang), que se poderá traduzir literalmente por “sem par”. A expressão é também empregue no contexto da discussão romântica clássica da mulher certa para o homem certo (e vice-versa), no sentido de “único(a)”. O conceito do destino sentimental recorre a elementos fantásticos, como o referido anel e o Fogo Sagrado de Meilong, mas acaba por resolver-se através de conceitos de interpretação modernos e enviando mensagens optimistas, nem sempre presentes nos filmes de Wong Kar-wai. Isto poderá servir como pequeno indício de que há algo mais para ler no filme do que a vertente da comédia tola, com um pouco de romance à mistura.

Pessegueiro
A segunda canção constitui um divertido duelo de pontos de vista entre Yilong e Wushuang, com recurso a uma série de trocadilhos e malentendidos fingidos. Enquanto ela sugere uma ligação romântica entre os dois, pouco ou nada subtilmente, ele, deveras “tapado” quanto à condição feminina dela e convicto de que só poderá haver sã camaradagem entre os dois, responde, destruindo e ridicularizando cada metáfora, ao mesmo tempo que reforça a sua condição celibatária: por exemplo, ela diz que todos os pauzinhos existem em pares; ele replica com “os palitos não podem estar errados!” A melhor réplica de Yilong surge quando Wushuang aponta um par de gansos nadando indolentemente na água, que poderá constituir um iluminado provérbio: “hoje a nadar; amanhã tostadinhos.” (As canções, como não podia deixar de ser, são um par.)

Outros elementos do filme reflectem a atenção dada à exploração da temática da unidade do par (em última análise, sempre referida ao conceito de yin yang 阴阳): desde logo a construção do texto sobre dois pares de irmãos que se envolvem sentimentalmente em dois tipos de relações: uma “real”, com a atracção dos opostos e uma “artificial” com a atracção entre opostos que afinal o não são. Esta segunda vertente assenta sempre em Wushuang: a relação com Fénix não pode funcionar pelos mesmos motivos que a relação com Yilong pode funcionar, i.e., a identidade sexual. Os irmãos têm nomes paralelos, identificando os géneros: long 龍 (dragão/masculino) e feng 風 (fénix/feminino), transmitidos para o restaurante de ambos, baptizado de “Dragão-Fénix”. Por alguma razão, a legendagem manteve o nome original dele (Yilong), mas optou por traduzir o dela (Fengjie).

Ganso
O filme foi rodado com som síncrono, mas nenhuma das versões – cantonesa ou mandarim – apresenta sincronização perfeita dos diálogos com o movimento dos lábios dos actores: é notório que, durante a rodagem, Leung e Wong falaram cantonês e Wei e Chang mandarim. A generalidade dos secundários deverá falar no dialecto de Hong Kong. Wong dobra-se a si mesma na versão em mandarim e tanto ela como Leung interpretam as duas canções (em mandarim, em ambas as versões), baseadas na ópera tradicional de Huangmei.

4

Disponível num óptimo DVD de Hong Kong (Mei Ah, R0), com bom som e imagem anamórfica, mas sem extras de relevo, nem sequer um miserável trailer, apenas o acesso directo às duas (bonitas) cantigas e um texto sobre a Caicha ou Ópera de Huangmei.

publicado online em 1/12/02

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