Sang-hwan (Ryu) é um polícia de giro inexperiente e honesto ao ponto de embaraçar os colegas. Ao perseguir um marginal coloca-se frente à mira de Eui-jin (Yun), uma praticante de artes marciais e pupila de um grupo de anciões conhecidos como os Sete Mestres. Devido ao acidente com libertação de energia qi mal direccionada, Sang-hwan fica KO e Eui-jin leva-o à presença dos mestres que, enquanto tratam do seu restabelecimento, lhe reconhecem um vasto potencial. Heug-un (Jeong), o membro dos Sete Mestres que se rebelou contra o grupo décadas atrás, regressa ao activo e procura pôr as mãos num segredo que lhe permitirá alcançar um poder desmesurado.
«Arahan» é uma nova entrada na filmografia de Ryu Seung-wan, realizador de «No Blood No Tears» (2002), uma obra crua e violenta, vincada por uma forte componente de acção urbana, que acompanha duas mulheres que se decidem apropriar de um saco cheio de dinheiro pertencente a criminosos. Ryu começou por dar nas vistas com «Die Bad» (2000), uma primeira longa-metragem construida com base em quatro curtas — com continuidade entre elas — rodadas em 16mm, com um protagonista que se vê forçado a recorrer à violência e tem de lidar com as consequências dos seus actos. O realizador tem uma apetência natural para o cinema de artes marciais, mais particularmente para a "acção de rua", estilizada não tanto com base em técnicas tradicionais, mas mais no improviso e na necessidade de adaptação a contrangimentos do cenário onde a acção decorre. Estas características remetem-nos para dois nomes essenciais do cinema de acção de Hong Kong: Jackie Chan e Sammo Hung Kam-bo — o primeiro pela contínua adaptação aos elementos e à configuração do local onde o protagonista se vê obrigado a lutar e o segundo pela crueza e brutalidade dos embates físicos.
O interesse de Ryu pelo cinema de artes marciais foi mais directamente expresso na curta-metragem «Dajjimawa Lee» (1998), disponibilizada (sem legendas) no DVD sul-coreano de «Die Bad». À medida que ia tendo mais meios, o realizador foi adaptando a sua linguagem cinematográfica. «No Blood No Tears» está formalmente próximo dos policiais de artes marciais feitos em Hong Kong nos anos 80 e 90, mas este «Arahan» tem um orçamento confortável e anuncia-se pós-«The Matrix» e pós-«Volcano High», duas obras populares que recorreram à tecnologica digital como acessório de criação de segmentos de acção a desafiar a gravidade. O realizador coibe-se de avançar para um "épico" de acção, optando pelo desenvolvimento de uma comédia ligeira, com um pouco de romance adicionado que, a certa altura, têm de se desviar para dar espaço ao combate entre o Bem e o Mal.
Filmes "trans-género" arriscam-se a incongruências, requerendo algum engenho no modo como se misturam os elementos ou se muda de registo. Infelizmente, a diversidade de registos de «Arahan» não é a mais feliz. O texto constrói-se com base numa história desgastada, com a luta pelo conhecimento ou por um artefacto que encerra um poder supremo e com um vilão, verdadeira caricatura do mal, sempre com um ar mal-disposto, bidimensional. Do outro lado, os "soldados do bem" aos quais se junta um "escolhido", que ignora o seu poder, com capacidades que poderão ser superiores às daqueles que ocuparam todas as suas vidas a treinar e a estudar — método essencial no cinema comercial de estabelecer uma conexão com o espectador médio, como que a dizer-lhe que apesar de estar em casa sentado no sofá pode, de um momento para o outro, tornar-se um verdadeiro Mestre-de-qualquer-coisa instantâneo. Estas linhas gerais foram recentemente usadas de forma muito similar num filme para cabo muito mauzinho chamado «Invicible» (2001), protagonizado por Billy Zane e com coreografia de acção de Ching Siu-tung.
Uma história déjà vu não tem que condicionar o mérito de um filme. Podíamos ainda ter humor espirituoso, romance apelativo, drama envolvente — ingredientes que, em conjunto ou por si sós, poderiam compensar a ausência de um texto de onde só se conseguem extrair sinopses que provocam esgares de desconfiança a qualquer cinéfilo. Mas tal não veio a suceder, uma vez que os ingredientes de género praticamente se anulam uns aos outros. Por exemplo, a acção, que tendo em conta o breve currículo do realizador se esperaria de grande impacto, é interrompida ou até ridicularizada, quando se opta por transformar o que podia ser uma sequência movimentada num sketch humorístico. O romance é quase uma obrigatoriedade do guião, mas manifesta-se de forma automática, pois os protagonistas estão demasiado ocupados com outras coisas para terem tempo para se relacionarem. E o ritmo da narrativa é quebrado por segmentos sem os quais o filme passaria muito bem, como a ida dos dois mestres à televisão, um momento que não chega a ser de humor — poderia pretender sê-lo, no entanto —, mas ao qual também não foi conferida relevância dramática, perdendo-se qualquer pretensa mensagem, como a tradição que é inevitavelmente obnubilada pelo mundo moderno.
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Sang-hwan (Ryu Seung-beom) prepara-se para enfrentar Heug-un (Jeong Du-hong). |
O segmento final de qualquer clássico de artes marciais que se preze requer, obrigatoriamente, uma sequência longa e elaborada. «Arahan» respeita a expectativa, mas o "grande final" acaba por ser demasiado longo e cansativo. Foi como que se os cineastas se tivessem lembrado que este era suposto ser um filme de acção e tivessem de despejar tudo o que pudessem nos minutos finais. Não deixa de ser irónico que um dos desequilíbrios do filme seja assim patente: aqui a acção arrasta-se, mas em momentos anteriores é demasiado curta e interrompida antes que chegue realmente a aquecer. Apesar de conter alguns efeitos digitais eficazes, estes momentos finais denotam uma imperfeita utilização dos fios que puxam os actores pelos ares — aqui não basta confiar na remoção digital em pós-produção; requer-se primeiro a execução de movimentos fluídos e naturais, o que nem sempre sucede. O confronto num café, mais ao estilo de "luta de rua", parece servir para nos lembrar que tipo de filme é que Ryu devia estar a fazer.
«Volcano High» também não é um grande filme, mas, quem sabe, a sua maior modéstia, o apostar num humor descontraído como tónica dominante e um ritmo mais apurado (mesmo na versão longa, original) tenham sido responsáveis por resultados ligeiramente superiores. «Arahan» é, em muitos aspectos, mais apurado e sofisticado que «Volcano High», não deixa de ter segmentos visualmente apelativos e algumas coreografias de acção bem executadas, de modo que o visionamento está longe de ser um suplício. E apesar das imperfeições que se referiram no parágrafo anterior, os valores de produção fazem-se notar e, de um modo geral, são bem empregues no ecrã.
No elenco não há falhas a apontar. Encabeçado por Ryu Seung-beom — irmão do realizador —, inclui o veterano Anh Seong-ki, numa incursão bem sucedida pelos campos da comédia, seguindo-se à “incursão” anterior, militar, na ilha de Silmi (1), e a estreante Yun So-i.
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