Kim Ki-duk começou a dar nas vistas nos mercados internacionais a partir de «Seom» [«The Isle»] (2000), em competição em Veneza e no Fantasporto. O festival português atribuiu-lhe o Prémio Especial do Júri e deu o galardão de Melhor Actriz a Seo Jeong. Alguns actos das personagens chocaram parte da audiência, ainda que a representação não fosse particularmente gráfica.
«Suchoiin Bulmyeong» [«Address Unknown»] e «Nabbeum Namja» [«Bad Guy»] (ambos de 2001) reforçaram o perfil de Kim como enfant terrible e provocador, invocando a ira de muitos, incluindo grupos feministas devido ao modo como as personagens femininas são (mal)tratadas: a violência física e o sexo não consensual são uma constante.
As últimas obras do realizador sul-coreano mantêm alguma aura de provocação, mas são de digestão mais fácil; "arte e ensaio" mais limpo e mais do agrado da crítica internacional e dos festivais de cinema. Kim parece ter querido fazer o pleno dos três grandes: «Samaria» (2003), passou por Berlim, «Ferro 3» esteve em competição em Veneza, e ambos lhe valeram prémios de realização. «Hwal» [«The Bow»], já de 2005, parece ter sido concluído a tempo de ir a Cannes, de onde regressou sem qualquer distinção.
Kim não tem formação no campo do cinema, mas sim nas Belas Artes, o que contribui, em paralelo com o seu percurso biográfico, para que tome a posição de alguém de fora do sistema, um “marginal”. Tal reflecte-se nas personagens dos seus filmes, as quais, frequentemente, rejeitam a comunicação verbal e exteriorizam os sentimentos através da violência — para com eles próprios e para com os que estão próximos.
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Tae-seok (Jae Hi) "insere-se" numa família. Seon-hwa (Lee Seung-yeon) é subjugada pelo marido violento (Kwon Hyeok-ho) |
A abordagem narrativa do realizador está próxima de uma visão ensaísta do cinema, não pressupondo a criação convencional de um guião; desenvolve um conceito, sem preocupações se a execução será ou não “cinemática”. Não são as personagens que nos transmitem a história, definindo-se emocionalmente — surgem como emanações teóricas, sem intuito de serem “humanizadas” —, mas a imagem e o silêncio. Falar em personagens “tridimensionais” faz pouco sentido no cinema de Kim Ki-duk.
Em «Ferro 3», estamos novamente na presença de indivíduos desajustados da sociedade e da família tradicional. Tae-seok expressa o seu desejo de “fazer parte” imiscuindo-se em casas alheias, simulando a sua vida como parte daquelas vidas e inserindo-se, literalmente, nos retratos de família. Ao mesmo tempo, a sua presença, directa ou indirectamente, irá afectar (positivamente?) os lares por onde passa.
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A relação entre Tae-seok e Seon-hwa trará problemas sérios a ambos. |
Por seu lado, Seon-hwa “faz parte”. No entanto, ainda que more numa casa luxuosa com um marido rico, a sua vida é miserável — a personagem encarna mesmo um certo cliché de “mulher troféu”, visto apenas “nos bastidores”, longe do convívio social por força das nódoas negras. Lemos nas entrelinhas que o seu passado como modelo fotográfica esteve na origem da atracção por parte do marido, sendo também o motor do ciúme, da violência e da vontade de mantê-la fechada entre quatro paredes, numa casa vazia.
Não sendo um dos melhores filmes de Kim Ki-duk, «Bin Jip» é de uma coerência admirável e revê-se com prazer, como o contemplar de uma paisagem. Mesmo que encaremos as personagens como abstracções, Seon-hwa não pode deixar de nos confundir: revolta-se ao mesmo tempo que permanece na dependência de um homem violento. Qualquer alteração a essa vida derivará de factores exteriores, ou seja, da interferência de Tae-seok e não de uma tomada de posição sua.
O texto final, impresso no ecrã, afere-se como uma redundância, procurando orientar interpretações por parte da audiência, num momento em que a ambiguidade potenciaria um final mais satisfatório e sugeria maior reflexão sobre a simbologia da curiosa relação entre as personagens, que resulta de um aperfeiçoamento lento e gradual das capacidades de Tae-seok, motivado pelo seu desejo de “fazer parte”.